
História real. O noivo que se tornou lenda. Carlos Hidalgo, 1840, Puebla. Crime inexplicável. Olá a todos, bem-vindos mais uma vez ao nosso canal. Se é a sua primeira vez aqui, convido-o a subscrever-se para não perder estas histórias fascinantes de crimes e mistérios do México do século XIX.
E você que já nos acompanha, deixe-nos nos comentários de onde nos está a ver e que horas são no seu país. Agora sim, comecemos com esta história que perdurou por quase dois séculos na memória coletiva de Puebla. Parte um, a cidade de Puebla. Em 1840 era um centro nevrálgico de comércio e cultura no México pós-independência. As suas ruas de paralelepípedos serpenteavam entre construções coloniais de pedra cinzenta e tijolo vermelho, enquanto as cúpulas das suas inumeráveis igrejas dominavam o horizonte como guardiões silenciosos da moral e das tradições. Os vulcões Popocatepetl e Iztaccíhuatl
erguiam-se majestosos a oeste, os seus picos nevados brilhando sob o sol do planalto, recordando à população que a natureza sempre observava das alturas. No coração desta sociedade estratificada e conservadora, onde as aparências eram tudo e os segredos eram guardados ciosamente atrás de grossas paredes de adobe, vivia Carlos Hidalgo Ramírez.
Aos seus anos, Carlos representava tudo o que uma família decente podia aspirar para o seu filho. Era atraente, com feições aristocráticas herdadas da sua mãe espanhola, olhos escuros, penetrantes e uma presença que impunha respeito sem necessidade de erguer a voz. A sua educação tinha sido impecável.
Tinha estudado no Colégio do Estado e posteriormente passou dois anos na Cidade do México, onde se familiarizou com as correntes filosóficas e políticas que agitavam o país ainda jovem e instável. Mas o que verdadeiramente distinguia Carlos na sociedade de Puebla era a sua posição económica.
O seu pai, Dom Rodrigo Hidalgo, tinha estabelecido um dos comércios de tecidos mais prósperos da região. A loja, localizada estrategicamente no portal dos mercadores da praça principal, importava sedas da China, veludos europeus e algodões finos de Veracruz. Durante as últimas duas décadas, Dom Rodrigo tinha expandido o negócio até se tornar fornecedor exclusivo das famílias mais distintas, acumulando uma fortuna considerável que lhe permitiu comprar propriedades tanto na cidade como nas fazendas circundantes.
Carlos tinha crescido numa casa senhorial de dois andares na rua dos ferreiros, a poucas quadras da catedral. A residência familiar era um testemunho da ascensão social dos Hidalgo, um pátio central calcetado com uma fonte de pedra rosa, corredores com colunas toscanas, quartos amplos decorados com móveis trazidos da Europa e um oratório privado onde a família se reunia todas as tardes para o terço.
Dona Leonor, a mãe de Carlos, tinha-se assegurado de que o seu único filho varão recebesse não só educação académica, mas também os modos e o refinamento necessários para se mover com naturalidade entre a elite de Puebla. A vida de Carlos parecia seguir um guião perfeitamente traçado. Depois de ajudar o seu pai no negócio durante 5 anos, demonstrando uma habilidade natural para os números e as negociações, tinha chegado o momento de dar o próximo passo esperado. Um casamento vantajoso que consolidasse a posição da
família. E que melhor união do que com Sofía Mendoza y Orosco, filha mais nova de Dom Ignacio Mendoza, um dos latifundiários mais ricos de Puebla. Sofía era tudo o que a sociedade considerava o ideal feminino da época. Aos seus 20 anos possuía uma beleza serena e clássica, pele branquíssima que nunca tinha conhecido o sol, cabelo negro azeviche que usava preso em penteados elaborados e olhos verdes que tinha herdado da sua avó materna.
Tinha sido educada pelas freiras do convento de Santa Rosa, onde aprendeu a bordar, tocar piano, ler textos religiosos e todas as virtudes que se esperavam de uma esposa decente. O seu dote incluía uma fazenda produtora de trigo no vale de Atlixco e uma casa na rua do relógio, além de uma generosa quantia em dinheiro e joias familiares.
O compromisso tinha sido anunciado seis meses antes, durante um suntuoso jantar na residência dos Mendoza. Dom Ignacio, um homem de 60 anos com o rosto curtido por décadas de supervisão das suas terras sob o sol, tinha dado a sua bênção após longas conversas com Dom Rodrigo sobre contratos, propriedades e fusão de interesses comerciais.
Para ambas as famílias, a união representava mais do que um casamento. Era uma aliança estratégica que fortaleceria a sua posição numa sociedade onde o poder económico e social se media não só pela riqueza individual, mas pelas ligações e redes familiares.
O casamento estava programado para sábado, 14 de março de 1840, na catedral de Puebla, com uma receção posterior no casino espanhol. Os preparativos tinham consumido os últimos meses. Mandaram-se fazer vestidos na Cidade do México. Encomendou-se o banquete aos melhores cozinheiros da região. Contrataram-se músicos e elaborou-se uma lista de convidados que incluía mais de 200 pessoas da elite de Puebla, incluindo funcionários do governo estadual, comerciantes prósperos, latifundiários e membros do clero. Mas enquanto as duas famílias se consumiam nos preparativos externos da celebração,
poucos conheciam a verdade que se ocultava por trás da fachada perfeita de Carlos Hidalgo. Porque Carlos guardava segredos, segredos que ameaçavam destruir não só o seu futuro casamento, mas toda a reputação que a sua família tinha construído durante décadas. O primeiro segredo era a sua relação com Mariana Solís, uma jovem de 23 anos que vivia no bairro de El Alto. Mariana não pertencia à aristocracia de Puebla.
O seu pai tinha sido um modesto artesão de Talavera que morreu quando ela tinha 15 anos, deixando a família numa situação económica precária. A sua mãe, Dona Josefa, tinha conseguido manter à tona a oficina familiar, mas o estigma social de serem mulheres sem proteção masculina tinha-as relegado para as margens da respeitabilidade.
Carlos tinha conhecido Mariana dois anos antes, quando visitou a oficina para encomendar peças decorativas para a loja do seu pai. Ficou cativado não só pela sua beleza, diferente da de Sofía, mais terrenal e vibrante, mas pela sua inteligência e espírito independente. Mariana tinha aprendido o ofício do seu pai e trabalhava habilmente na decoração das peças de cerâmica, criando designs que combinavam os motivos tradicionais com inovações próprias.
O que começou como visitas profissionais evoluiu rapidamente para encontros clandestinos. Carlos, habituado a que tudo na sua vida seguisse as regras estabelecidas pela sua família e pela sua classe social, encontrou em Mariana uma liberdade que nunca tinha experimentado. Com ela podia falar de ideias, de literatura, de política, sem as restrições de etiqueta que regiam as suas interações com Sofía.
Com Mariana, Carlos podia ser simplesmente um homem, não um símbolo de estatuto ou uma peça num jogo de alianças familiares. Os seus encontros realizavam-se com precaução extrema. Carlos visitava a oficina sob pretextos comerciais ou encontravam-se na fazenda de um amigo de confiança nos arredores da cidade.
Ocasionalmente, quando a escuridão proporcionava cobertura suficiente, Carlos ia à modesta casa de Mariana em El Alto, entrando por uma porta traseira que dava para um beco pouco movimentado. Durante mais de um ano, Carlos viveu esta vida dupla, convencendo-se de que poderia manter ambos os mundos separados. Dizia a si mesmo que a sua relação com Mariana era um parêntese temporário, uma última aventura antes de assumir as responsabilidades do casamento.
Mas o que não antecipou foi que os seus sentimentos por Mariana se aprofundariam até se tornarem algo que não podia controlar nem ignorar. Três meses antes do casamento, Mariana tinha-lhe comunicado que estava grávida. A notícia caiu sobre Carlos como um bloco de pedra.
Durante dias andou como um sonâmbulo, cumprindo mecanicamente as suas obrigações na loja e as visitas protocolares à família Mendoza, enquanto a sua mente girava incessantemente em torno do problema. Não podia casar com Mariana. A sua família jamais o permitiria e fazê-lo significaria perder não só a sua herança, mas o seu lugar na sociedade. Mas também não podia abandoná-la com um filho seu.
Mariana, por sua vez, não lhe exigiu nada. Assegurou-lhe que não revelaria a sua identidade como pai e que encontraria a maneira de sobreviver. Mas Carlos via a dor nos seus olhos, a resignação de uma mulher que tinha aprendido a não esperar justiça de um mundo desenhado para proteger os poderosos. O segundo segredo de Carlos era ainda mais sombrio.
Durante os últimos 6 meses tinha estado a desviar dinheiro do negócio familiar. Não grandes quantidades que chamassem a atenção de imediato, mas pequenas somas que ia subtraindo das contas, falsificando entradas nos livros de contabilidade. No total, tinha acumulado cerca de 3000 pesos, uma fortuna considerável. O propósito: Carlos tinha fantasiado com a ideia de escapar.
Tinha investigado discretamente sobre a possibilidade de se estabelecer em Veracruz ou mesmo zarpar para a Europa. Com 3000 pesos poderia comprar passagens, estabelecer um pequeno negócio, começar uma nova vida onde ninguém conhecesse a sua história e levaria Mariana consigo. Mas cada vez que se aproximava do ponto de tomar a decisão final, algo o detinha.
O peso das expetativas, o amor e respeito pelos seus pais, o terror do escândalo e da desonra. Carlos estava preso entre dois mundos, duas vidas, dois futuros mutuamente exclusivos. Enquanto isso, os preparativos para o casamento continuavam inexoráveis. Sofía, na sua inocência cultivada, parecia genuinamente entusiasmada com o matrimónio.
Nas poucas ocasiões em que lhes era permitido conversar a sós, sempre sob a vigilância discreta de uma tia ou dama de companhia, ela falava com entusiasmo sobre a vida que construiriam juntos, os filhos que teriam, a casa que decorariam. Carlos assentia e sorria, sentindo cada vez mais o peso da traição que carregava na alma. Na noite de quinta-feira, 12 de março, dois dias antes do casamento, celebraria-se a despedida de solteiro de Carlos.
Os seus amigos tinham organizado uma reunião no casino de artesãos, um clube social frequentado pela burguesia comerciante de Puebla. Assistiriam uma dúzia dos seus amigos mais próximos, homens da sua mesma idade e posição social que representavam a próxima geração da elite de Puebla. Carlos levantou-se naquela manhã com um pressentimento sombrio.
Enquanto se vestia observando pela janela do seu quarto as ruas de Puebla que começavam a encher-se de atividade, sentiu uma estranha certeza de que algo fundamental estava prestes a mudar. Não sabia se era intuição ou simplesmente o peso acumulado dos seus segredos, mas uma voz interior avisava-o de que o tempo das decisões tinha chegado.
Às 10 da manhã, Carlos dirigiu-se à loja para ajudar o seu pai com a revisão de inventários. Dom Rodrigo, notando a tensão no rosto do seu filho, atribuiu-a aos nervos naturais prévios ao casamento. Bateu-lhe no ombro com afeto e disse-lhe que em breve tudo teria passado e começaria a sua nova vida.
Se ao menos Dom Rodrigo soubesse quão proféticas resultariam ser as suas palavras, embora não da maneira que imaginava. Parte dois. A tarde de 12 de março decorreu com uma lentidão exasperante para Carlos. Cada hora que passava aproximava-o mais da encruzilhada que tinha estado a evitar durante meses. Depois de terminar as suas obrigações na loja, regressou a casa para comer com a sua família.
A refeição, como sempre, foi servida formalmente na sala de jantar principal com Dona Leonor a supervisionar cada detalhe do serviço enquanto conversava animadamente sobre os últimos ajustes para a cerimónia. A sua mãe tinha dedicado meses a planear cada aspeto do casamento, desde a seleção de flores que decorariam a catedral até ao menu preciso que seria servido no banquete.
Para Dona Leonor, este casamento representava a culminação de anos de cuidadosa criação e planeamento social. O seu filho unir-se-ia a uma das famílias mais antigas de Puebla, consolidando definitivamente a ascensão dos Hidalgo, de comerciantes prósperos a membros de pleno direito da aristocracia regional.
Durante a refeição, Carlos mal provou a sopa de tortilha e o mole poblano que tanto gostava. A sua irmã mais nova, Guadalupe, uma rapariga de 16 anos com a mesma vivacidade da sua mãe, não parava de fazer perguntas sobre a festa daquela noite. Dom Rodrigo interveio com voz firme, recordando a Carlos que devia comportar-se com medida e não permitir que os seus amigos o levassem a excessos impróprios de um cavalheiro prestes a casar. Carlos assentiu sem convicção.
Sabendo que o seu pai jamais poderia imaginar a verdadeira natureza do seu tormento interior. Enquanto a conversa familiar fluía ao seu redor, os seus pensamentos voavam para Mariana. O que estaria ela a fazer nesse momento? Estaria a trabalhar na oficina, com as mãos manchadas de pigmentos azuis e amarelos enquanto decorava pacientemente as peças de Talavera? Ou estaria deitada, sentindo já as primeiras mudanças da sua gravidez, contemplando um futuro incerto como mãe solteira? Depois da refeição, Carlos retirou-se para o seu quarto com a desculpa de descansar
antes da noite. Fechou a porta atrás de si e deixou-se cair na cadeira junto à sua secretária. Sobre a superfície de madeira polida descansavam vários objetos que definiam a sua vida: livros de contabilidade do negócio, algumas cartas de amigos da Cidade do México, um retrato em miniatura de Sofía em moldura de prata que a sua futura sogra lhe tinha oferecido.
Mas o que Carlos procurava estava escondido num compartimento secreto da secretária. Com mãos trêmulas pressionou o painel oculto e extraiu um pequeno pacote embrulhado em tecido. Dentro estavam as cartas de Mariana, escritas numa caligrafia simples mas clara que tinha aprendido com o seu pai. Não eram muitas. Os seus encontros eram principalmente em pessoa, mas Carlos tinha-as guardado todas.
Desdobrou uma ao acaso e começou a lê-la, sentindo como as palavras atravessavam as defesas que tinha construído em volta do seu coração. “Meu querido Carlos”, começava a carta datada de dois meses atrás. “Hoje trabalhei num novo design que creio que gostarias. Combinei os motivos tradicionais da árvore da vida com elementos mais modernos.
Pergunto-me se é possível fazer isso na vida real. Também pegar no que herdamos do passado e combiná-lo com o que sonhamos para o futuro. Embora suponha que alguns sonhos não estão destinados a realizar-se, verdade? Não importa o quanto os desejemos. Tenho saudades tuas, sempre tua, M.” Carlos fechou os olhos sentindo o peso das decisões não tomadas, das palavras não ditas.
Sabia que naquela noite, durante a despedida de solteiro, precisava fingir alegria e entusiasmo pelo seu iminente casamento. Os seus amigos esperariam piadas, risos, talvez alguma confissão cómica sobre os nervos pré-nupciais. Ninguém poderia suspeitar que o noivo mais invejado de Puebla estava a contemplar seriamente a possibilidade de abandonar tudo. Guardou as cartas novamente no seu esconderijo e preparou-se para a noite.
Vestiu-se com cuidado, escolhendo um fato de pano escuro, colete de brocado e laço de seda que a sua mãe tinha mandado confecionar especialmente para as festividades nupciais. Enquanto se olhava ao espelho, viu um estranho, um homem atraente e bem vestido, com todas as vantagens que a sociedade podia oferecer, mas com olhos que refletiam uma desesperação profunda que nenhum fato elegante podia disfarçar.
Às 7 da tarde, Carlos saiu de sua casa. O ar de março era fresco mas agradável, com aquele toque de frescura noturna característico do planalto. As ruas de Puebla começavam a esvaziar-se enquanto as famílias se retiravam para os seus lares para o jantar. Os lampiões públicos, alimentados a óleo, projetavam círculos de luz amarelada nos passeios, criando ilhas de claridade na crescente escuridão.
O casino de artesãos encontrava-se a 10 quadras da casa dos Hidalgo, numa esquina proeminente perto do mercado. Era um edifício de dois andares com fachada de pedra, cujas janelas do primeiro andar estavam protegidas por grades de ferro forjado.
No rés-do-chão funcionava um café durante o dia, enquanto o segundo andar abrigava salões privados onde os sócios se reuniam para jogar cartas, discutir negócios e política ou simplesmente socializar longe das restrições domésticas. Quando Carlos chegou, vários dos seus amigos já estavam presentes.
Receberam-no com vivas e palmadas nas costas, conduzindo-o ao salão privado que tinham reservado para a ocasião. O quarto era amplo e estava decorado com gosto sóbrio. Paredes pintadas de verde escuro, retratos de heróis da independência, móveis de madeira maciça e uma mesa comprida coberta com garrafas de vinho, conhaque e tequila de Jalisco. Entre os presentes estava Felipe Cárdenas, o melhor amigo de Carlos desde a infância.
Felipe era filho de um advogado proeminente e partilhava com Carlos uma educação semelhante, embora o seu temperamento fosse mais despreocupado e hedonista. Alto e de compleição atlética, Felipe era conhecido pela sua habilidade para as piadas e o seu aparente desinteresse pelas responsabilidades sérias da vida adulta.
No entanto, sob essa fachada de frivolidade, Felipe possuía uma inteligência aguda e uma lealdade inabalável para com os seus amigos. Também estava presente Joaquín Ruiz, um jovem comerciante que tinha herdado recentemente o negócio têxtil. Joaquín era meticuloso e calculador, com uma habilidade natural para os números que lhe tinha permitido expandir o negócio familiar.
Era baixo de estatura, mas compensava com uma presença dominante e uma voz profunda que impunha atenção. Os outros assistentes eram uma mistura de filhos de comerciantes, pequenos latifundiários e profissionais. Salvador Montes, médico recém-licenciado da escola de medicina, Antonio Gómez, administrador de uma fazenda de pulque, Ramiro Silva, notário público e vários outros que formavam o círculo social de Carlos.
A noite começou com brindes pelo futuro noivo. Os copos ergueram-se repetidamente enquanto os presentes expressavam as suas felicitações e bons desejos. Carlos sorria e agradecia, representando o papel que se esperava dele. Mas cada gole de conhaque só intensificava a sensação de irrealidade que o invadia.
À medida que a noite avançava e o álcool fluía com maior liberdade, as conversas tornaram-se mais animadas e menos guardadas. Felipe, já bastante embriagado, começou a contar histórias escandalosas sobre aventuras passadas, provocando gargalhadas gerais. Joaquín embarcou num monólogo sobre estratégias comerciais para o novo governo conservador que acabava de assumir o poder.
Salvador Montes, aproveitando a sua recente licenciatura, ofereceu conselhos médicos não solicitados sobre os aspetos físicos do casamento, provocando mais risos e comentários atrevidos. Mas Carlos notou que nem todos estavam simplesmente a celebrar. Observou trocas de olhares entre alguns dos seus amigos, conversas sussurradas que cessavam abruptamente quando ele se aproximava.
Uma sensação de inquietude começou a crescer no seu peito, uma intuição de que algo mais estava a acontecer sob a superfície de festividade aparente. Perto das 10 da noite, Felipe aproximou-se de Carlos com uma expressão que tentava ser casual, mas que traía certa tensão.
“Amigo meu”, disse colocando um braço sobre o ombro de Carlos, “temos uma surpresa para ti, uma última aventura antes de te acorrentares ao sagrado jugo matrimonial.” Carlos franziu a testa. “Que tipo de surpresa?” Felipe sorriu, mas havia algo forçado na sua expressão. “Nada que te deva preocupar, apenas um pouco de diversão, uma visita a certo estabelecimento onde poderás despedir-te apropriadamente da tua vida de solteiro.”
Carlos entendeu imediatamente a que se referia. Existiam em Puebla, como em todas as cidades importantes, casas de tolerância onde os homens de certa posição podiam satisfazer necessidades que a sociedade respeitável fingia não existir. Carlos nunca tinha visitado esses lugares, primeiro por princípios morais e depois porque Mariana tinha preenchido completamente esse aspeto da sua vida.
“Não estou interessado”, respondeu Carlos com firmeza, tratando de manter um tom leve para não ofender. “Prefiro ficar aqui convosco.” Mas Felipe insistiu e logo outros se juntaram à pressão. “É tradição”, argumentou Joaquín. “Todos os homens o fazem. Não podes casar sem…” “Disse que não”, interrompeu Carlos, a sua voz adquirindo um tom mais duro.
Um silêncio incómodo caiu sobre o grupo. Os amigos trocaram olhares e Carlos percebeu que havia algo mais por trás da insistência. “O que se passa realmente?”, perguntou sentindo que a tensão que tinha estado a acumular-se toda a noite finalmente emergia à superfície. Felipe hesitou, claramente lutando com alguma decisão interna.
Finalmente suspirou e disse em voz baixa: “Carlos, precisamos de falar em privado.” Os dois homens retiraram-se para um canto do salão, longe dos outros. Felipe serviu-se de outro copo de conhaque, bebeu-o de um gole como que para ganhar coragem e depois olhou diretamente para Carlos. “Eu sei de Mariana Solís”, disse Felipe sem rodeios.
Carlos sentiu como se o chão desaparecesse sob os seus pés. “O quê? O que estás a dizer?” “A jovem da oficina de Talavera. Sei que tens estado a vê-la e sei que está grávida.” O pânico apoderou-se de Carlos. “Como…?” “A minha irmã compra cerâmica nessa oficina”, explicou Felipe. “Viu as visitas, ouviu rumores e quando há duas semanas viu o estado de Mariana, fez as ligações.”
Felipe fez uma pausa, a sua expressão misturando preocupação e algo mais difícil de decifrar. “Carlos, não sou o único que o sabe. Os rumores já estão a circular.” Carlos deixou-se cair numa cadeira, sentindo que todo o seu mundo cuidadosamente construído se desmoronava. “Quem mais sabe?” “Ainda não muitos, mas é questão de tempo. Por isso organizamos esta reunião. Alguns de nós queremos ajudar-te.”
“Há maneiras de gerir esta situação.” “De que tipo de maneiras?”, perguntou Carlos, embora parte de si temesse a resposta. Felipe sentou-se junto dele, baixando ainda mais a voz. “Joaquín conhece alguém em Veracruz, uma família que estaria disposta a ficar com a criança quando nascesse. A rapariga receberia compensação económica suficiente para se estabelecer discretamente noutro lugar.”
“Tu casas com Sofía como está planeado e ninguém precisa de saber de nada.” Carlos sentiu náuseas. “Estás a falar de comprar o silêncio de Mariana, de separar uma mãe do seu filho.” “Estou a falar de proteger o teu futuro, de proteger a tua família do escândalo. Pensa bem, Carlos.”
“Se isto se souber publicamente, os Mendoza cancelarão o casamento. O teu pai perderá metade dos seus negócios por associação. A tua mãe e a tua irmã serão apontadas socialmente. E para quê? Para que possas brincar aos heróis românticos com uma artesã.” A crueza das palavras atingiu Carlos como bofetadas físicas.
“E quanto a Mariana? E quanto à criança?” “Estarão melhor do que estariam se isto explodisse publicamente. Pelo menos terão segurança económica.” Carlos fechou os olhos, sentindo o peso de todas as suas decisões erradas convergir naquele momento. “Preciso de pensar.” “Não há tempo para pensar”, pressionou Felipe. “Os rumores estão a crescer. Em poucos dias chegarão aos ouvidos de Dom Ignacio Mendoza.”
“Precisamos de agir agora.” “Dá-me esta noite”, suplicou Carlos. “Amanhã dar-te-ei a minha resposta.” Felipe estudou-o com preocupação genuína. “Está bem, mas Carlos, por favor, sê sensato. Não destruas a tua vida por isto.” A reunião continuou depois disso, mas a atmosfera tinha mudado.
Carlos mal participava, perdido nos seus pensamentos turbulentos. Os outros, sentindo a tensão, moderaram a sua celebração. As conversas tornaram-se mais forçadas, os risos menos espontâneos. Pouco depois da meia-noite, Carlos anunciou que se retiraria. Recusou as ofertas de companhia, insistindo que precisava de caminhar sozinho para arejar a cabeça do álcool.
Os amigos deixaram-no ir, observando-o desaparecer na noite de Puebla com expressões de preocupação. Carlos caminhou sem rumo definido ao princípio, os seus passos ressoando nas ruas desertas. A lua quase cheia iluminava as fachadas das casas e as torres das igrejas, projetando sombras alongadas que pareciam persegui-lo.
Passou junto à catedral, a sua massa imponente dominando a praça escura, e sentiu o peso de séculos de tradição e expetativas sociais pressionando sobre ele. Mas os seus passos, quase por vontade própria, levaram-no em direção a El Alto. Sabia que era uma loucura, que se alguém o visse a ir a casa de Mariana a esta hora, o escândalo seria imediato e irreversível, mas precisava de vê-la, falar com ela, enfrentar juntos a crise que se avizinhava. Parte três.
As ruas de El Alto eram muito diferentes das do centro aristocrático de Puebla. Aqui as casas eram mais modestas, de adobe e madeira, muitas de apenas um andar com telhados de telha vermelha ou simplesmente de chapa. As ruas não estavam uniformemente calcetadas. Algumas secções eram de terra batida que se transformava em lama durante a época das chuvas.
Os lampiões públicos eram escassos e a iluminação vinha principalmente das velas ou lâmpadas de óleo que brilhavam fracamente por trás das janelas das habitações. Carlos avançava com cautela, encostando-se às sombras dos muros. A esta hora, as ruas estavam praticamente desertas.
Ocasionalmente passava algum trabalhador noturno ou algum grupo de homens saindo de uma pulquería, as suas vozes elevadas pelo álcool. Carlos encapuçava-se mais na sua capa sempre que ouvia passos, temendo ser reconhecido. A oficina e a casa de Mariana encontravam-se numa rua lateral perto da praça do bairro.
Era uma construção modesta de adobe caiado, com uma porta de madeira desgastada pelo tempo e uma janela com grades de ferro oxidado. Uma luz ténue brilhava por trás das portadas de madeira, indicando que alguém ainda estava acordado. Carlos deteve-se na esquina, observando a casa durante vários minutos.
O seu coração batia com força, não só pelo medo de ser descoberto, mas pela magnitude da decisão que sabia que devia tomar naquela noite. Na sua mente ressoavam as palavras de Felipe: “não destruas a tua vida por isto”. Mas também ouvia outra voz mais profunda e mais autêntica, que lhe perguntava que tipo de homem seria se abandonasse a mulher que amava e o filho que carregava no seu ventre.
Finalmente, tomando uma decisão que sabia ser imprudente mas inevitável, Carlos cruzou a rua e bateu suavemente à porta. Esperou, sustendo a respiração até ouvir passos no interior. A porta entreabriu-se apenas alguns centímetros e o rosto de Mariana apareceu na fresta, iluminado pela vela que segurava. Os seus olhos abriram-se com surpresa ao reconhecê-lo. “Carlos, o que fazes aqui? É perigoso.”
“Preciso de falar contigo, por favor.” Mariana hesitou apenas um momento antes de abrir a porta o suficiente para deixá-lo entrar. Carlos deslizou rapidamente para o interior e ela fechou atrás dele, passando o ferrolho com mãos trêmulas. A casa era simples, mas limpa e ordenada.
A divisão principal servia como oficina, sala e cozinha. As paredes estavam cheias de prateleiras com peças de Talavera em diferentes fases de produção, algumas ainda sem decorar, outras com designs a meio, algumas já cozidas e prontas para venda. Um pequeno forno de adobe ocupava um canto. Uma mesa de trabalho estava coberta de pincéis, pigmentos e esboços de designs.
Mariana usava um vestido simples de algodão escuro com um xaile sobre os ombros para se proteger do frio noturno. O seu cabelo negro, geralmente preso, caía solto sobre os ombros. Mesmo na luz ténue da vela, Carlos podia ver as mudanças subtis no seu rosto, uma palidez que não estava lá antes, sombras sob os olhos que falavam de noites sem dormir.
“Onde está a tua mãe?”, perguntou Carlos, percebendo que a casa parecia vazia, exceto por eles os dois. “Foi a San Martín Texmelucán visitar a minha tia, que está doente. Voltará em três dias.” Mariana colocou a vela sobre a mesa e virou-se para ele, cruzando os braços sobre o peito num gesto protetor. “Carlos, não devias estar aqui.”
“Amanhã, depois de amanhã é o teu casamento.” “Eu sei”, respondeu Carlos, sentindo o peso dessas palavras. “Mas já não posso continuar a fingir. Esta noite, durante a despedida, soube que há rumores. O Felipe sabe, outros também. É questão de tempo até que tudo expluda.” Mariana empalideceu ainda mais. “Então a culpa é minha. Devia ter sido mais cuidadosa.”
“Não”, interrompeu Carlos, aproximando-se e pegando nas suas mãos. “A culpa é minha. Eu criei esta situação. Eu envolvi-te sabendo que estava comprometido. Eu tenho sido o cobarde que não teve coragem de tomar uma decisão.” Lágrimas começaram a rolar pelas faces de Mariana.
“E que decisão tomarás agora? O Felipe e os teus amigos ter-te-ão oferecido uma saída, certo? Alguma maneira de fazer com que eu e este bebé desapareçamos discretamente para que possas seguir com a tua vida perfeita.” Carlos não pôde negar a acusação porque era exatamente o que tinha acontecido. O silêncio foi resposta suficiente e ele viu a dor atravessar o rosto de Mariana como uma faca.
“Vai-te embora”, disse ela, libertando as suas mãos e recuando. “Vai-te embora e casa com a tua Sofía. Eu desenrasco-me sozinha. Sempre soube que isto terminaria assim.” “Não”, disse Carlos com veemência. “Foi para te dizer isto que vim. Não vou abandonar-te. Não posso.” Mariana olhou para ele com incredulidade, misturada com esperança desesperada. “O que estás a dizer?” “Estou a dizer que te amo, que não posso imaginar um futuro sem ti, que este filho é meu e tenho a obrigação moral de o criar.”
As palavras saíram em torrente, como se tivessem estado contidas demasiado tempo. “Sei o que isto significa. A minha família repudiar-me-á. Perderei a minha herança. A sociedade rejeitar-nos-á. Mas pelo menos serei honesto. Pelo menos poderei olhar-me ao espelho sem sentir nojo.” Mariana cobriu a boca com as mãos, soluçando abertamente.
“Mas Carlos, não podes.” “A minha vida inteira, a minha vida inteira tem sido uma mentira”, interrompeu-a. “Tenho vivido segundo as expetativas de outros, seguindo um guião que outra pessoa escreveu para mim. Mas nestes últimos meses contigo tenho sido mais eu mesmo do que em toda a minha vida anterior.” Aproximou-se dela e tomou-a nos seus braços.
Mariana agarrou-se a ele, o seu corpo sacudido por soluços que eram uma mistura de alívio, medo e amor. Carlos segurou-a sentindo a certeza da sua decisão solidificar-se no seu peito como algo tangível e real. Permaneceram assim durante vários minutos até que Mariana finalmente se acalmou o suficiente para falar. “O que faremos?” “Não podemos ficar em Puebla. Eu sei.”
“Tenho estado a guardar dinheiro. 3000 pesos. É suficiente para irmos para longe, começar de novo. Poderíamos ir para Veracruz, apanhar um barco para Yucatán ou mesmo Cuba. Num lugar novo onde ninguém nos conheça. Poderíamos apresentar-nos como um casamento legítimo.” Mariana separou-se ligeiramente para olhá-lo nos olhos.
“Realmente farias isso? Abandonarias tudo?” “Por ti, pelo nosso filho. Sim.” Ela abanou a cabeça, mas havia um sorriso fraco nos seus lábios. “És um tonto, Carlos Hidalgo, um nobre tonto.” “Talvez, mas serei um tonto honesto.” Carlos pegou no seu rosto entre as mãos.
“Precisamos de agir rápido. Amanhã à noite, depois de escurecer, eu trarei o dinheiro. Tu prepara o essencial: roupa, documentos, qualquer coisa de valor que possas levar facilmente. Apanharemos a diligência da meia-noite para Orizaba. De lá podemos continuar para Veracruz.” “E a tua família? O casamento?” Carlos sentiu uma pontada de dor ao pensar nos seus pais, em Sofía, em tudo o que deixaria para trás. “Escrever-lhes-ei uma carta. É o mínimo que posso fazer. Explicarei…”
“Bem, não posso explicar de maneira que entendam, mas ao menos saberão que foi decisão minha, que não foi culpa tua.” Mariana assentiu lentamente, começando a processar a realidade do que estavam a planear. “Será difícil. Não teremos nada. O teu dinheiro não durará para sempre.” “Eu sei trabalhar.”
“Aprendi o negócio do meu pai. Posso encontrar emprego no comércio, na administração. E tu tens as tuas mãos, o teu talento. A Talavera de Puebla é valorizada em todo o lado. Sobreviveremos.” Permaneceram a falar durante horas, planeando cada detalhe da sua fuga. Carlos diria que precisava de resolver uns assuntos na loja durante a tarde do dia seguinte, o que lhe daria pretexto para estar fora de casa.
Iria ao banco e levantaria o dinheiro que tinha estado a guardar numa conta pessoal. Depois regressaria a casa para o jantar familiar, agiria com normalidade e esperaria até que todos estivessem a dormir para pegar nos seus documentos mais importantes e sair. Mariana, por sua vez, prepararia dois pequenos baús com o essencial. Venderia discretamente algumas peças de Talavera para ter dinheiro adicional.
Diria às vizinhas que a sua mãe precisava que ela fosse ajudá-la em San Martín Texmelucán, explicando assim a sua ausência iminente. Quando o relógio de uma igreja próxima deu as 3 da madrugada, Carlos soube que devia partir. Permanecer mais tempo aumentava o risco de ser visto a sair da casa de Mariana ao amanecer, o que seria catastrófico.
À porta beijaram-se com uma mistura de paixão, medo e esperança. “Amanhã”, sussurrou Carlos, “amanhã começaremos a nossa vida real.” “Tem cuidado”, respondeu Mariana. “Se algo corre mal…” “Nada correrá mal. Confia em mim.” Carlos saiu para a noite, que agora começava a dar lugar às primeiras luzes cinzentas do amanecer.
As ruas continuavam desertas enquanto regressava apressadamente para o centro da cidade. A sua mente girava com planos, contingências, preocupações, mas sob tudo isso havia uma sensação de paz que não tinha experimentado em meses. Finalmente tinha tomado uma decisão. Finalmente tinha escolhido viver segundo os seus próprios termos. Não viu a figura que o observava de uma esquina escura.
Não notou os olhos que tinham seguido cada um dos seus movimentos desde que saiu do casino de artesãos. Não soube que a sua visita noturna à casa de Mariana tinha sido presenciada por alguém que tinha muito a perder se Carlos Hidalgo cancelasse o seu casamento com Sofía Mendoza. Parte quatro.
Carlos chegou a casa precisamente quando o céu começava a tingir-se de rosa com o amanecer. Entrou silenciosamente pela porta de serviço que dava para o pátio traseiro, uma entrada que usava ocasionalmente quando regressava tarde de reuniões sociais. A casa estava em silêncio absoluto. Mesmo os criados ainda não se tinham levantado para começar as suas tarefas matinais.
Subiu as escadas para o seu quarto com cuidado, evitando os degraus que sabia que rangiam. Uma vez no seu quarto, fechou a porta e deixou-se cair na cama completamente vestido. O esgotamento físico e emocional da noite atingiu-o de repente, mas a sua mente continuava demasiado acelerada para permitir-lhe dormir. Ficou a olhar para o teto, ouvindo como a casa começava gradualmente a acordar.
O som de passos na cozinha, o tilintar de panelas, vozes distantes dos criados preparando-se para outro dia. Deve ter dormido algumas horas porque a próxima coisa que soube foi que alguém batia à sua porta. A luz do sol entrava brilhante pela janela, indicando que já era meio da manhã. “Jovem Carlos”, chamou a voz de Trinidad, a criada sénior da família.
“A sua mãe pergunta se vai descer para o pequeno-almoço.” Carlos sentou-se sentindo cada músculo do seu corpo protestar. “Diga-lhe que descerei em meia hora.” Lavou-se rapidamente na bacia de porcelana mudando de roupa. As suas mãos tremiam ligeiramente enquanto abotoava o colete. Hoje era sexta-feira, 13 de março.
Amanhã devia casar-se, mas esta noite, se tudo corresse segundo o plano, estaria numa diligência a caminho de Orizaba com Mariana. O pequeno-almoço foi uma tortura refinada. Dona Leonor estava radiante de felicidade, falando sem parar sobre os preparativos finais. O florista tinha confirmado que os lírios chegariam frescos amanhã cedo. O pároco tinha enviado uma nota confirmando o horário da cerimónia.
A costureira de Sofía tinha enviado uma mensagem dizendo que o vestido de noiva estava pronto e era a coisa mais bonita que já tinha criado. Dom Rodrigo, embora menos expressivo que a sua esposa, também mostrava satisfação evidente. Para ele, este casamento representava a culminação de décadas de trabalho árduo.
O seu filho tornar-se-ia genro de Dom Ignacio Mendoza, um dos homens mais poderosos de Puebla. As oportunidades de negócios multiplicar-se-iam. A família Hidalgo ocuparia finalmente o lugar na hierarquia social que Dom Rodrigo sempre tinha ambicionado. Guadalupe, a irmã de Carlos, bombardeava o seu irmão com perguntas sobre a festa da noite anterior, querendo saber todos os detalhes escandalosos que, obviamente, nunca lhe contariam. Carlos respondia com monossílabos, empurrando distraidamente a
comida no seu prato. “Sentes-te bem, filho?”, perguntou finalmente Dona Leonor, notando a sua palidez e falta de apetite. “Bebeste demais ontem à noite.” “Estou bem, mãe, apenas nervos antes do casamento.” “É natural”, assentiu ela com compreensão. “Todos os noivos sentem o mesmo, mas verás que amanhã, quando estiveres no altar ao lado de Sofía, todos esses nervos desaparecerão.” Carlos assentiu sem convicção.
Se a sua mãe soubesse que em menos de 12 horas o seu filho teria desaparecido, deixando para trás uma carta explicando a sua fuga com outra mulher, não podia nem imaginar a dor e a humilhação que causaria. Mas já não havia volta a dar. Tinha tomado a sua decisão. Depois do pequeno-almoço, Carlos desculpou-se dizendo que precisava de ir à loja para rever umas contas finais antes do casamento.
Dom Rodrigo aprovou, satisfeito por o seu filho manter o sentido de responsabilidade, mesmo nas vésperas do seu matrimónio. Carlos caminhou pelas ruas de Puebla sob o sol brilhante de março, sentindo-se como se se movesse num sonho. Tudo parecia surrealmente normal. Os vendedores apregoando as suas mercadorias, as mulheres com cestos dirigindo-se ao mercado, as carruagens das famílias aristocráticas circulando pelas ruas principais, as crianças brincando nas praças. Era um dia comum para todos, exceto para ele, que estava prestes a
dinamitar a sua vida inteira. Mas primeiro tinha de ir ao banco. O banco de comércio de Puebla estava localizado num edifício imponente de dois andares perto da praça principal. Carlos entrou com a segurança de quem visitava regularmente o estabelecimento. O gerente, Dom Ezequiel Morales, saudou-o efusivamente, felicitando-o pelo seu iminente casamento. “Preciso de fazer um levantamento”, explicou Carlos.

“Assuntos relacionados com a viagem de núpcias.” “Com certeza, Dom Carlos, de quanto precisa?” “3000 pesos.” Dom Ezequiel levantou a sobrancelha surpreendido. Era uma quantia considerável. “3000… Muito bem. É o seu dinheiro, com certeza. Quer em notas ou em ouro?” “Metade em notas do Banco do México, metade em moedas de ouro.” Enquanto esperava que preparassem o dinheiro, Carlos sentiu uma presença ao seu lado.
Virou-se e encontrou-se face a face com Joaquín Ruiz, o seu amigo da noite anterior. “Carlos, que coincidência encontrar-te aqui”, disse Joaquín, embora algo no seu tom sugerisse que a coincidência não era tal. Também tinha assuntos bancários a tratar. Os dois homens trocaram olhares e Carlos soube instintivamente que Joaquín suspeitava de algo.
“Apenas a levantar fundos para a viagem de núpcias”, explicou Carlos, tratando de soar casual. “Com certeza.” Joaquín sorriu, mas o sorriso não chegou aos seus olhos. “Diz-me, depois da nossa conversa de ontem à noite, pensaste na proposta? A família em Veracruz está disposta a ajudar, mas precisamos de agir em breve.” “Ainda estou a considerar”, mentiu Carlos.
“Não tardes muito a decidir. Os rumores crescem rápido nesta cidade.” Joaquín baixou a voz. “De facto, ouvi algo interessante esta manhã. Um dos meus moços viu alguém que se parecia muito contigo a sair do bairro de El Alto perto do amanecer. Claro, disse-lhe que devia estar enganado.”
“Por que estarias tu em El Alto a essas horas?” O sangue de Carlos gelou. Joaquín sabia. Ou pelo menos suspeitava fortemente. “O teu moço enganou-se”, disse Carlos com firmeza. “Fico feliz em ouvi-lo. Seria complicado se alguém te tivesse visto a visitar certa casa em particular. Muito complicado.” Joaquín colocou uma mão no ombro de Carlos. “Somos amigos, Carlos, e os amigos cuidam-se mutuamente.”
“Espero que tomes a decisão correta.” Antes que Carlos pudesse responder, Dom Ezequiel regressou com o dinheiro cuidadosamente contado e embalado num saco de couro. Carlos assinou os recibos correspondentes, pegou no dinheiro e saiu do banco sentindo o olhar de Joaquín a queimar-lhe as costas.
Uma vez fora, Carlos caminhou rapidamente, mudando de direção várias vezes para se certificar de que não o seguiam. A sua paranoia estava justificada. Se Joaquín suspeitava de algo, outros também poderiam fazê-lo. Precisava de ser extremamente cuidadoso. Dirigiu-se à loja familiar, onde passou as horas seguintes fingindo rever inventários e contas.
O seu pai trabalhava ao balcão atendendo clientes e negociando com fornecedores. Era uma cena tão familiar, tão reconfortante na sua normalidade que Carlos sentiu uma onda de dor antecipada. Esta seria uma das últimas vezes que veria o seu pai assim, no seu elemento, orgulhoso do seu negócio e do seu filho.
A meio da tarde, Carlos escreveu a carta. Fê-lo na pequena oficina traseira com mãos trêmulas. As palavras eram inadequadas para expressar o que sentia, mas fez o seu melhor esforço. “Queridos pais, quando lerem isto, já terei partido.”
“Sei que não há palavras que possam justificar o que estou a fazer, nem desculpas que possam aliviar a dor e a humilhação que vos causarei. Cometi erros terríveis. Envolvi-me romanticamente com uma mulher enquanto estava comprometido com outra. Essa mulher, Mariana Solís, carrega agora um filho meu. Não posso em consciência abandoná-la nem casar com Sofía sabendo disto.”
“Sei que isto destruirá as nossas relações com a família Mendoza. Sei que o meu nome será amaldiçoado e que vocês sofrerão vergonha por associação. Por isso peço-vos perdão com toda a minha alma, mas não posso viver uma mentira. Não posso construir a minha vida sobre a traição e o engano. Devo assumir a responsabilidade pelas minhas ações, não importa o custo. Por favor, cuidem da Guadalupe.”
“Digam à Sofía que o erro foi completamente meu, que ela é inocente de toda a culpa. Espero que algum dia possam perdoar-me, embora entenda se nunca o fizerem. Amar-vos-ei sempre.” Carlos selou a carta e guardou-a no bolso interior do seu casaco. Deixá-la-ia no seu quarto essa noite, onde a encontrariam amanhã quando descobrissem a sua ausência.
Regressou a casa para o jantar, que foi outra sessão tortuosa de conversa animada sobre o casamento. Dona Leonor tinha convidado várias tias e primas para uma última reunião familiar antes do grande dia. As mulheres enchiam a sala de jantar com os seus risos e mexericos enquanto discutiam o que vestiriam para a cerimónia e especulavam sobre quanto tempo Carlos e Sofía demorariam a dar-lhes o primeiro neto.
Carlos comeu mecanicamente, respondendo quando lhe falavam, sorrindo quando era apropriado, mas sentindo como se estivesse a observar a cena de fora do seu corpo. Estas mulheres, a sua mãe, a sua irmã, as suas tias, nunca o perdoariam e tinham razão em não o fazer. O que estava prestes a fazer era imperdoável segundo todos os códigos sociais e morais do seu mundo.
Depois do jantar, retirou-se para o seu quarto cedo, alegando precisar de descansar para o grande dia. Dona Leonor deu-lhe um beijo na testa, com os olhos a brilhar de orgulho e amor maternal. “Estou tão orgulhosa de ti, filho. Amanhã será o dia mais feliz das nossas vidas.” Carlos teve de desviar o olhar para que ela não visse as lágrimas que ameaçavam transbordar.
No seu quarto começou a fazer as malas. Não podia levar muito sem chamar a atenção, por isso selecionou apenas o essencial: roupa de muda, documentos pessoais, algumas cartas e fotografias, o dinheiro do banco. Meteu tudo numa pequena mala de couro. Às 10 da noite, a casa finalmente acalmou.
Carlos esperou mais uma hora, ouvindo os sons familiares do seu lar, o ranger das madeiras, o vento batendo suavemente nas portadas, os passos do guarda-noturno que fazia a sua ronda pela rua. Às 11, Carlos pegou na sua mala e saiu silenciosamente do seu quarto. Deixou a carta sobre a sua secretária, bem visível. Desceu as escadas com extremo cuidado, evitando cada um dos degraus que rangiam.
Chegou à porta de serviço, passou o ferrolho lentamente para minimizar o ruído e saiu para o pátio traseiro. A noite estava clara, com a lua quase cheia iluminando o seu caminho. Carlos atravessou o pátio, saiu pela porta traseira que dava para o beco e começou a caminhar rapidamente para El Alto.
Não tinha maneira de saber que nunca chegaria ao seu destino. Parte cinco. O beco atrás da casa dos Hidalgo era escuro e estreito, ladeado pelos muros altos das residências vizinhas. Carlos caminhava encostado às sombras, com a mala numa mão, o coração a bater-lhe com força no peito, cada ruído sobressaltava-o.
O miar de um gato, o rumor do vento entre as folhas das árvores, o ladrar distante de algum cão. Tinha percorrido apenas duas quadras quando ouviu passos atrás de si. Deteve-se virando-se bruscamente, mas não viu ninguém na escuridão do beco. “Quem está aí?”, chamou em voz baixa. Por um momento houve apenas silêncio. Então uma figura emergiu das sombras.
Carlos reconheceu imediatamente a silhueta de Joaquín Ruiz. “Carlos”, disse Joaquín. A sua voz calma mas firme. “Sabia que tentarias fazer algo estúpido.” O pulso de Carlos acelerou. “Andaste a seguir-me?” “Alguém tinha de o fazer.”
“Depois de te ver no banco esta manhã a levantar todo esse dinheiro, depois do que o meu moço viu ontem à noite, era óbvio o que planeavas.” Joaquín aproximou-se mais e agora Carlos podia ver a sua expressão na luz ténue da lua. Não havia ameaça no seu rosto, mas sim uma determinação inabalável. “Não podes fazer isto, Carlos. Não podes destruir a tua vida e desonrar a tua família desta maneira.” “Não é decisão tua”, respondeu Carlos tentando manter a calma. “Afasta-te, Joaquín.”
“Não quero lutar contigo.” “Também eu não quero lutar. Só quero que ganhes juízo.” Joaquín levantou as mãos num gesto conciliador. “Pensa friamente, Carlos. Que futuro terás com essa mulher? Serás um pária social. A tua família repudiar-te-á. Não terás trabalho, não terás posição, não terás nada. E ela, acreditas que será feliz sendo a causa da tua queda?” “Seremos felizes juntos, é tudo o que importa.” “Isso são fantasias românticas.”
A voz de Joaquín elevou-se, depois moderou-se quando se lembrou de onde estavam. “Ouve, ainda há tempo. Tenho tudo arranjado. A família em Veracruz está à espera. Daremos à rapariga dinheiro suficiente para viver confortavelmente. A criança será criada por uma família decente. Tu casas com Sofía como está planeado.”
“Em poucos meses ninguém se lembrará de nenhum rumor.” “E terei de viver o resto da minha vida sabendo que abandonei o meu filho, sabiendo que vendi a minha alma por conveniência social.” “Terás de viver com responsabilidade para com a tua família.” Joaquín aproximou-se mais, o seu tom tornando-se urgente. “Carlos, não estás apenas a arruinar-te a ti próprio. O teu pai perderá metade do seu negócio.”
“Dom Ignacio Mendoza assegurar-se-á de que nenhum comerciante respeitável trabalhe com os Hidalgo. A tua mãe será humilhada publicamente. A tua irmã terá dificuldades em encontrar um bom casamento. Tudo isso vale a pena por uma artesã que conheceste há dois anos?” As palavras atingiram Carlos como socos.
Sabia que Joaquín tinha razão sobre as consequências, mas isso não mudava o que sentia, o que sabia que era correto. “Não posso viver uma mentira, Joaquín. Não posso.” “Então és um egoísta”, disse Joaquín com dureza. “Estás a sacrificar todos os que te amam pelo teu próprio sentido de romantismo.” “Ou talvez todos vocês estejam a sacrificar a felicidade humana real para manter aparências sociais.” A voz de Carlos elevou-se.
A frustração e a tensão de dias finalmente explodindo. “Não vês, Joaquín? Este sistema está podre. Valorizamos mais o que os outros pensam do que o que realmente sentimos. Construímos gaiolas douradas e depois perguntamo-nos por que nos sentimos prisioneiros.” Joaquín abanou a cabeça. “És um ingénuo, Carlos.”
“O mundo funciona assim. Sempre funcionou assim. Não podes mudá-lo sozinho.” “Talvez não, mas posso escolher não participar nele.” Durante um longo momento, os dois homens olharam-se no beco escuro. O silêncio estendia-se entre eles, carregado de anos de amizade que se estava a fraturar irremediavelmente. Finalmente, Joaquín suspirou profundamente.
“Não posso deixar-te ir, Carlos, para teu próprio bem, para o bem da tua família.” “O que vais fazer? Lutar comigo? Gritar para acordar a vizinhança?” “Se for necessário.” Joaquín endireitou os ombros. “Não vou permitir que destruas a tua vida.” Carlos deu um passo atrás avaliando as suas opções. Podia tentar passar a correr por Joaquín, mas o seu amigo era mais corpulento e atlético.
Podia gritar, mas isso atrairia atenção indesejada. Ou podia… Um novo som interrompeu os seus pensamentos, mais passos, desta vez múltiplos. Três figuras mais emergiram das sombras, bloqueando ambas as extremidades do beco. Carlos reconheceu Felipe Cárdenas e Antonio Gómez. O terceiro era um homem que não conhecia, corpulento e de aspeto rude, provavelmente algum tipo de guarda ou capanga contratado.
“Sinto muito, Carlos”, disse Felipe aproximando-se. A sua voz parecia genuinamente pesarosa. “Mas o Joaquín tem razão. Isto é para teu bem.” O pânico inundou Carlos. “O que é isto? Uma intervenção?” “Chama-lhe o que quiseres”, respondeu Joaquín. “Mas não vamos deixar-te cometer este erro. Levar-te-emos de volta para tua casa.”
“Amanhã casarás com Sofía e tudo seguirá como planeado.” “Não podem forçar-me.” Carlos olhou desesperadamente procurando uma rota de fuga, mas estava completamente cercado. “Não queremos usar a força”, disse Felipe. “Mas fá-lo-emos se for necessário. Por favor, Carlos, não tornes as coisas mais difíceis.” Nesse momento, Carlos tomou uma decisão impulsiva.
Deixou cair a sua mala e correu para o espaço mais estreito entre dois dos seus captores, esperando poder esquivar-se. Quase conseguiu. Passou por Antonio, mas o homem desconhecido agarrou-o pelo braço puxando-o para trás com força brutal. Carlos caiu de costas sobre os paralelepípedos, o impacto expulsando o ar dos seus pulmões. Antes que pudesse recuperar, os homens estavam sobre ele. Sentiu mãos agarrando-o, levantando-o.
Lutou, gritou, mas uma mão fechou-se sobre a sua boca, silenciando-o. “Acalmem-se.” A voz de Joaquín cortou o caos. “Não lhe façam mal, apenas levem-no.” O que aconteceu depois ficou gravado na memória de Carlos em fragmentos desarticulados como cenas de um pesadelo.
Arrastaram-no através das ruas escuras, longe do centro da cidade. Tentou gritar várias vezes, mas sempre uma mão cobria a sua boca. Ouviu discussões entre os seus captores, vozes elevadas debatendo o que fazer exatamente com ele. “Apenas precisa de uma noite para refletir”, insistia Felipe. “Amanhã ganhará juízo.” “E se não o fizer?”, perguntava Antonio. “Fará”, dizia Joaquín com segurança.
“Quando entender que não há outra opção, fá-lo-á.” Levaram-no para uma casa nos arredores da cidade, uma propriedade que Carlos reconheceu vagamente como pertencente à família de Joaquín. Arrastaram-no para o interior através de um pátio para o que parecia ser um armazém ou adega.
Havia caixas empilhadas, ferramentas agrícolas, sacos de grão. O cheiro de terra e pó enchia o ar. Empurraram-no contra uma parede. Carlos, exausto pela luta, deslizou até ficar sentado no chão de terra. Os quatro homens pararam à sua frente, os seus rostos iluminados tenuemente pela lâmpada de óleo que Antonio segurava. “Vais ficar aqui esta noite”, explicou Joaquín.
“Amanhã, quando tiveres refletido, levar-te-emos para tua casa. Casarás com Sofía. Tudo seguirá como planeado.” “Estão loucos”, arquejou Carlos, a sua voz rouca. “Não podem sequestrar-me. Isto é… isto é criminoso.” “Estamos a salvar-te de ti próprio”, corrigiu Felipe. “Um dia agradecer-nos-ás.” “Nunca.” Carlos tentou levantar-se, mas o homem corpulento empurrou-o de volta.
“O que acontece com a Mariana? Estará à minha espera, estará preocupada!” Os quatro homens trocaram olhares. Foi Antonio quem finalmente falou. “Já tratámos disso também.” O estômago de Carlos retorceu-se. “O que queres dizer?” “Enviámos alguém para falar com ela”, explicou Joaquín. “Informámo-la que tu tinhas reconsiderado, que tinhas tomado a decisão sensata. Oferecemos-lhe o acordo que discutimos.”
“Dinheiro, recolocação, família adotiva para a criança.” “Não”, sussurrou Carlos, sentindo o mundo desmoronar-se. “Não, não podem ter-lhe dito isso. Ela pensará que… pensará que a abandonei.” “É melhor assim”, disse Felipe com suavidade. “Um corte limpo. Ela poderá seguir em frente com a sua vida.” “Têm de deixar-me ir!”
Carlos gritou agora, a sua voz quebrando-se de desespero. “Têm de deixar-me explicar-lhe!” “Não”, disse Joaquín com firmeza, “isto termina aqui. Passa a noite a refletir, Carlos. Pensa na tua família. Pensa em tudo o que perderás. Amanhã, quando te perguntarmos se estás pronto para avançar com o casamento, espero que dês a resposta correta.”
Os quatro homens saíram do armazém. Carlos ouviu o som metálico de um ferrolho a deslizar, depois passos a afastar-se. A luz das suas lâmpadas desapareceu, deixando-o na escuridão quase total, com apenas um pequeno feixe de luz da lua filtrando-se por uma janela alta.
Carlos levantou-se a tremer, tateando. A porta estava solidamente fechada. Tateou as paredes procurando outra saída, mas não encontrou nenhuma. A janela estava demasiado alta para a alcançar e as grades eram grossas e de ferro. Estava preso. Deixou-se cair contra a parede, deslizando de novo para o chão. A sua mente girava freneticamente.
Mariana estaria à espera dele. Quando não chegasse, o que pensaria? Acreditaria na mensagem que Joaquín tinha enviado? Ou suspeitaria que algo mau tinha acontecido? E a sua família: amanhã, quando descobrissem a sua carta, mas ele não estivesse em lugar nenhum, o que fariam? Organizariam uma busca ou Joaquín e os seus cúmplices inventariam alguma história para explicar a sua ausência? As horas passaram com lentidão tortuosa.
Carlos tentou gritar por ajuda, mas estavam demasiado longe de qualquer habitação para que alguém o ouvisse. Testou a porta repetidamente, procurando algum ponto fraco, mas estava solidamente construída. Tentou empilhar caixas para chegar à janela, mas mesmo assim ficava fora do seu alcance.
Finalmente, exausto e derrotado, Carlos sentou-se num canto e esperou o amanhecer. A sua mente vagava entre o presente desesperado e as memórias. Mariana sorrindo enquanto lhe mostrava os seus designs de Talavera. Sofía tocando piano na sala dos seus pais. A sua mãe abraçando-o quando era criança.
O seu pai ensinando-o a calcular margens de lucro na loja. Tudo estava perdido. Agora o seu plano de fuga tinha falhado. Mariana pensaria que a tinha abandonado. A sua família seria humilhada e ele… ele seria forçado a viver uma mentira pelo resto da sua vida. Enquanto o céu fora da janela começava a clarear com as primeiras luzes do amanhecer de 14 de março, o dia que devia ser o do seu casamento, Carlos Hidalgo não tinha maneira de saber que as próximas horas determinariam não só o seu destino, mas que o transformariam numa lenda que perduraria por quase dois
séculos na cidade de Puebla, porque o que aconteceria a seguir desafiaria toda a explicação lógica e tornar-se-ia um dos mistérios não resolvidos mais famosos da história criminal mexicana do século XIX. Parte 6.
Quando Felipe Cárdenas, Joaquín Ruiz e Antonio Gómez regressaram ao armazém às 8 da manhã de 14 de março, esperavam encontrar um Carlos Hidalgo derrotado e disposto a cooperar. Tinham passado a noite na casa principal da propriedade, revezando-se para vigiar que Carlos não escapasse, discutindo os detalhes de como lidariam com a situação assim que ele cedesse.
O plano era simples. Levariam Carlos de volta para sua casa, onde a sua família já devia estar em pânico pela sua ausência. Carlos dir-lhes-ia que tinha saído cedo para refletir sobre o seu iminente casamento e se tinha perdido nos arredores da cidade. Não era uma grande desculpa, mas com o casamento programado para o meio-dia, haveria pouco tempo para perguntas. Casar-se-ia com Sofía como planeado e o escândalo seria evitado. Mas quando Joaquín rodou a chave no ferrolho e empurrou a porta do armazém, o que encontraram deixou-os paralisados de choque. O armazém estava vazio.
Carlos Hidalgo tinha desaparecido. Os três homens entraram a correr, olhando freneticamente em volta. O quarto estava exatamente como o tinham deixado, as caixas empilhadas, as ferramentas no seu lugar, os sacos de grão contra as paredes, mas Carlos não estava em lado nenhum.
“Como?” Felipe aproximou-se da porta examinando-a. Estava intacta, sem sinais de arrombamento. O ferrolho tinha estado fechado por fora. Joaquín tinha-o verificado pessoalmente várias vezes durante a noite. Correram para a janela alta. As grades continuavam firmemente no seu lugar, sem sinais de terem sido manipuladas.
De qualquer forma, era impossível alguém conseguir alcançá-la de dentro sem ajuda. “Tem de estar aqui”, insistiu Antonio, começando a mover caixas, procurando em cada canto escuro. “Não pode ter saído. A porta estava fechada, as grades intactas!” Mas uma busca exaustiva não revelou nada.
Carlos Hidalgo tinha simplesmente desaparecido de uma sala fechada à chave por fora, sem deixar qualquer rasto de como tinha escapado. O pânico apoderou-se dos três homens. “Meu Deus”, sussurrou Felipe, a realidade da situação atingindo-o. “Sequestrámo-lo. Se algo lhe aconteceu, se alguém descobre o que fizemos…” “Ninguém pode saber”, disse Joaquín bruscamente. Mas havia terror nos seus olhos também.
“Procuremos em toda a propriedade. Tem de estar aqui em algum lado.” Passaram as duas horas seguintes a revistar exaustivamente a fazenda e os seus arredores. Procuraram em cada edifício, cada celeiro, cada armazém. Interrogaram os poucos trabalhadores que viviam na propriedade, mas nenhum tinha visto ou ouvido nada invulgar durante a noite.
Carlos Hidalgo tinha desaparecido como se nunca tivesse existido. Enquanto os três homens procuravam desesperadamente, na casa dos Hidalgo, no centro de Puebla, o caos tinha estalado. Dona Leonor tinha entrado no quarto de Carlos às 7 da manhã para acordá-lo e certificar-se de que começava a preparar-se para o casamento. Encontrou a cama vazia e a carta sobre a secretária.
Os seus gritos tinham acordado toda a casa. Dom Rodrigo leu a carta com mãos trêmulas, o seu rosto passando do vermelho da fúria ao branco da incredulidade. Guadalupe chorava histericamente. Os criados corriam de um lado para o outro sem saber o que fazer. “Como pôde?”, gemia Dona Leonor repetidamente.
“Como pôde fazer-nos isto?” Dom Rodrigo, recuperando do choque inicial, tomou o controlo da situação. “Temos de encontrá-lo antes que seja tarde demais, antes que…” Não terminou a frase, mas todos entenderam. Antes que a notícia chegasse aos Mendoza. Enviaram criados procurar em todas as estalagens e pensões da cidade. Contactaram amigos de Carlos perguntando se sabiam de algo.
Ninguém tinha visto Carlos desde a noite anterior. Às 10 da manhã, 2 horas antes de dever começar a cerimónia, Dom Rodrigo não teve outra opção senão visitar pessoalmente a residência de Dom Ignacio Mendoza para cancelar o casamento. A humilhação foi absoluta. Dom Ignacio, inicialmente confuso, transformou-se em fúria quando Dom Rodrigo lhe explicou que Carlos tinha desaparecido, aparentemente fugindo com outra mulher.
Sofía, vestida já com o seu traje de noiva, desmaiou quando lhe deram a notícia. A sua mãe teve de ser sedada pelo médico da família. “O seu filho é um sem-vergonha, um canalha sem honra!”, rugiu Dom Ignacio. “Assegurar-me-ei de que o nome Hidalgo seja lama nesta cidade, que nenhum comerciante respeitável volte a tratar convosco!”
Pelo meio-dia, quando os convidados começaram a chegar à catedral esperando presenciar o casamento do ano, encontraram portas fechadas e rumores voando. Pela tarde, toda a Puebla sabia que Carlos Hidalgo tinha abandonado a sua noiva no altar para fugir com uma artesã de classe baixa que estava grávida dele. Mas havia um problema com esta narrativa.
Ninguém conseguia encontrar Carlos nem Mariana. A polícia foi contactada. Agentes visitaram a casa de Mariana em El Alto apenas para a encontrar vazia. As vizinhas confirmaram que Mariana tinha mencionado ir a San Martín Texmelucán cuidar de uma tia doente, mas quando as autoridades investigaram, descobriram que não havia nenhuma tia doente e Mariana nunca tinha chegado lá.
Também não havia registos de Carlos ou Mariana a embarcarem em qualquer diligência das que saíram de Puebla nas últimas 24 horas. Não tinham comprado passagens de comboio. Nenhum cocheiro se lembrava de os ter transportado. Era como se ambos se tivessem desvanecido no ar. Os dias tornaram-se semanas enquanto a investigação se alargava. A polícia entrevistou todos os amigos de Carlos, incluindo Felipe, Joaquín e Antonio.
Os três homens, aterrorizados de que a sua participação fosse descoberta, mantiveram silêncio absoluto sobre os eventos daquela noite. Disseram às autoridades que tinham celebrado com Carlos até tarde, que ele tinha parecido normal, talvez um pouco nervoso pelo casamento, mas nada fora do comum, que se tinha ido embora sozinho por volta da meia-noite.
Não mencionaram nada sobre segui-lo, sequestrá-lo ou fechá-lo. E certamente não mencionaram o inexplicável facto de que ele tinha desaparecido de um quarto fechado à chave. Joaquín, consumido pela culpa e pelo medo, regressou sozinho ao armazém dias depois, procurando alguma pista de como Carlos tinha escapado. Examinou cada centímetro do lugar, procurou túneis secretos, passagens ocultas, qualquer explicação lógica. Não encontrou nada.
O armazém era simplesmente um armazém sem características especiais e, no entanto, Carlos tinha desaparecido dele como por magia. A busca por Mariana Solís levou a outro beco sem saída. A sua mãe, Dona Josefa, regressou de San Martín Texmelucán e deparou-se com o facto de a sua filha ter desaparecido. Confirmou que Mariana tinha estado grávida, que tinha estado envolvida com um homem de classe alta que ela nunca conheceu pessoalmente.
Quando lhe mostraram uma fotografia de Carlos, Dona Josefa confirmou que era ele quem visitava a oficina. Porém, sobre o paradeiro da sua filha, Dona Josefa não sabia nada. Mariana tinha deixado uma nota breve, dizendo que iria a San Martín por alguns dias. Não tinha levado muita roupa nem posses, tinha simplesmente desaparecido. Enquanto passavam as semanas sem qualquer rasto de Carlos ou Mariana, as teorias começaram a proliferar.
Alguns acreditavam que tinham conseguido escapar apesar da falta de evidências, que tinham encontrado alguma maneira de sair de Puebla sem serem detetados e estavam a viver sob identidades falsas em algum lugar distante. Outros, mais sombrios nas suas suposições, acreditavam que algo terrível tinha acontecido, que talvez Carlos tivesse sido assassinado pela sua família ou pela família Mendoza para evitar o escândalo.
Que talvez Mariana tivesse morrido durante uma tentativa de aborto mal feita e o seu corpo tivesse sido escondido. Houve até rumores de que Dom Ignacio Mendoza, enfurecido pela humilhação, tinha contratado criminosos para matar Carlos e Mariana. Estes rumores foram suficientemente sérios para que a polícia investigasse, mas não encontraram qualquer evidência que os sustentasse. A família Hidalgo foi devastada.
Dom Rodrigo viu o seu negócio colapsar à medida que os clientes aristocráticos, seguindo o exemplo dos Mendoza, deixaram de frequentar a sua loja. Em questão de meses viu-se forçado a vender o negócio por uma fração do seu valor. A família teve de mudar-se para uma casa mais modesta. A reputação dos Hidalgo ficou permanentemente manchada.
Dona Leonor nunca recuperou completamente do choque. Passou o resto da vida à espera que Carlos regressasse, que aparecesse à porta um dia com uma explicação para tudo. Morreu 10 anos depois, ainda com esperança nos olhos. Guadalupe, a irmã de Carlos, teve grandes dificuldades em casar devido ao escândalo familiar.
Finalmente casou-se com um comerciante menor e viveu uma vida discreta e retirada. Sofía Mendoza, após meses de reclusão, acabou por casar com um latifundiário de Cholula. O casamento foi frio e formal, arranjado puramente por conveniência. Nunca falou publicamente sobre Carlos Hidalgo, mas os que lhe eram próximos disseram que o abandono a tinha marcado profundamente, tornando-a desconfiada e amarga.
Felipe Cárdenas, Joaquín Ruiz e Antonio Gómez levaram o seu segredo para o túmulo. Os três sofreram de pesadelos durante anos sobre aquela noite, sobre o quarto vazio, sobre o homem que desapareceu impossivelmente. As suas amizades fraturaram-se, não podiam olhar-se sem ver o reflexo da sua culpa partilhada. Joaquín desenvolveu problemas com o álcool, bebendo para esquecer.
Nos seus momentos de embriaguez dizia coisas incoerentes sobre quartos fechados e magia negra. As pessoas assumiam que era o delírio do álcool. Felipe tornou-se obsessivamente religioso, passando horas na igreja pedindo perdão por pecados que nunca especificava. Morreu jovem aos 42 anos.
Alguns diziam que de um coração partido pela culpa. Antonio abandonou Puebla completamente, mudando-se para Guadalajara, onde começou uma nova vida sob uma identidade parcialmente mudada, tentando desesperadamente escapar das memórias. Quanto a Mariana Solís e à sua mãe, o seu destino foi igualmente trágico. Sem o apoio da oficina, que dependia das vendas a clientes que agora as evitavam pelo escândalo, Dona Josefa caiu na pobreza. A oficina de Talavera teve de ser fechada.
As poucas posses de valor que tinham foram vendidas para pagar dívidas. Dona Josefa passou os anos seguintes a procurar desesperadamente pela filha. Viajou para todas as aldeias circundantes perguntando em igrejas, hospitais, casas de caridade. Mostrou o retrato de Mariana a centenas de pessoas. Ninguém a tinha visto.
A pobre mulher morreu 6 anos depois do desaparecimento. Alguns diziam que de pena, outros que simplesmente de esgotamento e desnutrição. As suas últimas palavras foram uma súplica a Deus para que lhe revelasse o que tinha acontecido com a sua única filha. A polícia manteve o caso oficialmente aberto durante 5 anos.
Investigadores revistaram cada pista imaginável. Dragaram o rio San Francisco à procura de corpos. Escavaram em propriedades suspeitas. Interrogaram dezenas de pessoas. Ofereceram recompensas por informação. Nunca encontraram nada conclusivo. Houve algumas descobertas que aprofundaram o mistério mais do que o resolveram. Um ano após o desaparecimento, um pastor que guardava ovelhas nas encostas do Popocatepetl relatou ter encontrado uma mala de couro enterrada superficialmente num barranco remoto. A mala continha roupa de homem de boa qualidade, alguns documentos pessoais e
exatamente 1500 pesos em notas e moedas de ouro, exatamente metade dos 3000 pesos que Carlos tinha levantado do banco. Os documentos confirmaram que a mala pertencia a Carlos Hidalgo, mas não havia sinais de violência na área, não havia restos humanos, não havia sangue, apenas a mala cuidadosamente enterrada, como se alguém tivesse planeado voltar por ela, mas nunca o fez.
Como chegou a mala àquela localização remota a mais de 2 dias de caminho de Puebla? Por que continha apenas metade do dinheiro? Onde estavam Carlos, Mariana e os outros 1500 pesos? Outra descoberta estranha ocorreu 3 anos depois. Uma mulher idosa em Oaxaca contactou as autoridades de Puebla dizendo que tinha conhecido um jovem casal que se chamava “Os Morales” e que vivia numa pequena aldeia da serra.
A mulher, grávida quando chegaram, deu à luz um menino. O homem trabalhava como escriturário na secretaria da Câmara Municipal. A descrição física coincidia vagamente com Carlos e Mariana. Mas quando as autoridades investigaram, descobriram que o casal tinha morrido dois anos antes num acidente.
A pequena ponte que cruzavam colapsou durante uma tempestade e os seus corpos foram arrastados pelo rio cheio. Nunca foram recuperados. O menino tinha sido adotado por uma família local. Eram realmente Carlos e Mariana? Os registos da câmara mostravam que o homem sabia ler e escrever bem, tinha conhecimentos de contabilidade e modos refinados, tudo consistente com Carlos.
Mas sem corpos, sem confirmação positiva, era impossível ter a certeza. A família que adotou a criança recusou-se a entregá-la para investigações, argumentando que o pequeno já tinha sofrido o suficiente. As autoridades, sem evidência definitiva, não puderam forçar a questão. Se aquela criança era realmente o filho de Carlos Hidalgo e Mariana Solís, nunca se saberia.
Com o passar dos anos, à medida que os protagonistas morriam e as testemunhas envelheciam, a história de Carlos Hidalgo transformou-se de escândalo social em lenda urbana. As versões multiplicaram-se, cada uma mais elaborada que a anterior. Alguns diziam que Carlos e Mariana tinham sido assassinados por sicários contratados pela família Mendoza, os seus corpos atirados para cavernas profundas do Popocatépetl, onde nunca seriam encontrados.
Apontavam a mala na montanha como evidência. Outros insistiam que tinham escapado com sucesso e vivido felizes sob identidades falsas. Que o casal em Oaxaca efetivamente eram eles, que tinham conseguido alguns anos de felicidade antes da sua morte acidental. Esta versão romântica era popular entre as classes trabalhadoras que a viam como justiça poética.
O aristocrata, renunciando ao seu privilégio por amor verdadeiro. Uma versão mais sombria, sussurrada em voz baixa nas tabernas, sugeria que Carlos nunca tinha planeado realmente fugir com Mariana, que tinha ido a casa dela naquela noite para silenciá-la permanentemente, para eliminar o problema que ameaçava o seu casamento vantajoso, que algo correu mal.
Talvez Mariana se tenha defendido, talvez tenha havido uma luta, que ambos morreram no confronto e algum cúmplice não identificado escondeu os corpos. Os adeptos desta teoria apontavam que nunca se encontraram os outros 1500 pesos, motivação suficiente para alguém ajudar a ocultar o crime. Os historiadores e criminologistas, que estudaram o caso décadas depois, notaram os muitos elementos inexplicáveis que nunca foram satisfatoriamente resolvidos.
O desaparecimento de Carlos de um quarto fechado à chave. Felipe, Joaquín e Antonio mantiveram silêncio sobre isto até às suas mortes, mas cada um deixou diários ou confissões escritas que foram descobertas pelas suas famílias anos depois. Estes documentos privados confirmavam que tinham sequestrado Carlos e o tinham fechado, mas que ele tinha desaparecido misteriosamente do quarto.
Como? Nem eles, nem qualquer investigador posterior pôde explicá-lo satisfatoriamente. O desaparecimento simultâneo de Mariana. As vizinhas confirmaram que ela estava em sua casa na noite de 12 de março, sozinha porque a sua mãe estava de viagem, mas pela manhã de dia 13 já não estava lá. Foi-se embora voluntariamente? Foi forçada?
Por quem? A mala na montanha com exatamente metade do dinheiro. Por que alguém enterraria cuidadosamente a mala, mas deixaria o dinheiro lá dentro? E onde estava o resto do dinheiro? A completa ausência de testemunhas numa cidade do tamanho de Puebla, em 1840, onde os mexericos viajavam rápido e todos conheciam os assuntos de todos.
Como puderam duas pessoas, uma delas de família proeminente, simplesmente desvanecer-se sem que ninguém visse nada? O caso de Carlos Hidalgo tornou-se matéria de estudo na Academia de Direito de Puebla. Gerações de estudantes debateram as teorias, analisaram a evidência limitada, especularam sobre as motivações dos diferentes atores.
Tornou-se o exemplo clássico de um crime não resolvido, onde as perguntas superavam largamente as respostas. A casa dos Hidalgo na rua dos Ferreiros desenvolveu a reputação de estar assombrada. Os novos donos relatavam ouvir passos no quarto que tinha sido de Carlos, vozes sussurrando na noite. O edifício mudou de mãos múltiplas vezes, cada proprietário ficando apenas brevemente antes de se mudar, inquieto pela atmosfera opressiva do lugar.
Eventualmente a casa foi convertida em edifício de apartamentos, depois em escritórios e finalmente demolida em 1920 para dar lugar a uma construção moderna. Mas mesmo o novo edifício, segundo alguns residentes, conservava algo da presença inquietante do passado. A oficina de Talavera, onde Mariana tinha trabalhado, também adquiriu a sua própria mitologia.
Passou por vários donos antes de fechar permanentemente em 1880. Os artesãos que trabalhavam lá relatavam sentir presenças, ver sombras moverem-se nos cantos dos olhos, ouvir soluços femininos quando a oficina estava vazia. No final do século XIX, a história de Carlos Hidalgo tinha-se solidificado no folclore de Puebla. Era contada em tertúlias.
Era narrada a crianças como conto moral sobre as consequências da desonestidade. Era debatida em círculos literários como tragédia romântica ou advertência social. Escritores locais tentaram romancear a história, cada um oferecendo a sua própria interpretação dos eventos. Poetas compuseram versos sobre o amor impossível de Carlos e Mariana.
Até se escreveu uma peça de teatro, embora tenha sido censurada pelas autoridades eclesiásticas por glorificar o adultério e a desobediência filial. A Revolução Mexicana de 1910 trouxe novas perspetivas sobre a história. Os revolucionários, muitos deles de classes humildes, lutando contra o sistema aristocrático, adotaram a versão romântica de Carlos como o herói que tinha renunciado ao seu privilégio por amor verdadeiro.

Cantaram-se “corridos” sobre o noivo que se tornou lenda, apresentando-o como precursor do igualitarismo social que a revolução procurava estabelecer. No século XX, à medida que Puebla crescia e se modernizava, a história manteve-se viva através de gerações.
Avós contavam-na aos netos, guias turísticos narravam-na aos visitantes, historiadores locais publicavam novas análises a cada década, cada um com teorias ligeiramente diferentes sobre o que realmente tinha acontecido. Nos anos 1960, um investigador particularmente dedicado chamado Dr. Arturo Mendizábal passou 5 anos a examinar todos os documentos disponíveis sobre o caso.
Entrevistou descendentes das famílias envolvidas, reviu arquivos eclesiásticos e governamentais. Viajou inclusive para Oaxaca para investigar a história do casal afogado. A sua conclusão, publicada num livro de 400 páginas intitulado “O Enigma Hidalgo: Crime, Paixão e Mistério na Puebla do Século XIX”, foi que Carlos e Mariana provavelmente tinham conseguido escapar de Puebla.
Tinham vivido alguns anos sob identidades falsas em Oaxaca e tinham morrido no acidente da ponte. O menino adotado, argumentava, era quase com certeza o filho de Carlos. Mas o seu livro também reconhecia honestamente as muitas perguntas sem resposta. Como Carlos escapou do quarto fechado? O que aconteceu exatamente durante aquelas horas críticas? Quem enterrou a mala? E porquê? Onde estava o dinheiro em falta? Em última análise, escreveu Mendizábal na sua conclusão, o caso de Carlos Hidalgo recorda-nos que nem todos os mistérios têm soluções arrumadinhas. Às vezes a história recusa-se a revelar os seus segredos completamente,
deixando-nos apenas com fragmentos, pistas contraditórias e a permanente inquietude do desconhecido. Pela década de 1980, a história tinha alcançado o estatuto de mítica. Era parte integrante da identidade cultural de Puebla, narrada ao lado de outras lendas locais como a da “China Poblana” ou os túneis secretos sob a cidade.
Cada 14 de março, o aniversário do casamento que nunca ocorreu, alguns habitantes de Puebla visitavam os locais associados à história: onde tinha estado a casa dos Hidalgo, o antigo casino de artesãos, o bairro de El Alto, onde Mariana tinha vivido. Organizavam-se roteiros noturnos seguindo os passos de Carlos Hidalgo, onde guias narravam a história enquanto conduziam turistas pelas ruas coloniais de Puebla.
A história tinha-se tornado parte da indústria turística da cidade, mais um elemento da rica tapeçaria histórica que atraía visitantes de todo o mundo. Em 2010, no 170º aniversário do desaparecimento, o governo municipal de Puebla instalou uma placa comemorativa no local onde tinha estado a casa dos Hidalgo.
A inscrição dizia: “Neste lugar viveu Carlos Hidalgo Ramírez, 1812-1840, cujo misterioso desaparecimento nas vésperas do seu casamento se tornou uma das lendas mais duradouras de Puebla. Que a sua história nos recorde que o amor, a honra e a verdade exigem muitas vezes sacrifícios que a sociedade não está preparada para entender.” A placa foi controversa.
Alguns argumentavam que glorificava a irresponsabilidade e o adultério. Outros defendiam que reconhecia o valor de seguir o próprio coração contra as pressões sociais. O próprio debate demonstrava que quase dois séculos depois a história de Carlos Hidalgo ainda tinha o poder de provocar paixões fortes.
O que realmente aconteceu a Carlos Hidalgo e Mariana Solís? Depois de quase 185 anos, a resposta permanece tão elusiva como sempre. As teorias abundam, a evidência é fragmentária e a verdade completa provavelmente morreu com os protagonistas há muito tempo. Talvez tenham conseguido escapar e viver felizes sob novas identidades. Talvez tenham morrido tragicamente, vítimas de acidente ou violência.
Talvez a história seja mais complicada, com voltas e reviravoltas que nunca conheceremos. A única certeza é que duas pessoas jovens presas entre o amor e o dever, entre os seus corações e as expetativas sociais, desapareceram na noite de 13 de março de 1840 e nunca mais foram vistas com certeza.
Os seus nomes vivem na memória coletiva de Puebla, gravados não em lápides, mas nas histórias que as gerações continuam a contar. Carlos Hidalgo, o noivo que se tornou lenda. Mariana Solís, a artesã cujo amor desafiou as barreiras de classe; duas almas que escolheram o risco do desconhecido sobre a segurança da mentira.
E nas noites tranquilas em Puebla, quando a lua cheia ilumina as antigas ruas coloniais e as sombras dançam nas paredes de pedra, alguns juram que ainda os conseguem ver. Um casal jovem caminhando de mãos dadas, eternamente fugindo para um futuro que talvez tenham alcançado ou talvez não, mas que pelo menos tiveram a coragem de procurar.
O mistério permanece por resolver, como corresponde a uma lenda verdadeira. Porque as melhores histórias não são aquelas que respondem a todas as perguntas, mas as que nos deixam a questionar, a imaginar, a debater. São as histórias que geração após geração nos recordam que a vida humana é complexa, que as decisões difíceis raramente têm respostas fáceis e que, às vezes, o maior mistério não é o que aconteceu, mas por que continuamos a precisar de o saber.
Na Puebla moderna, com as suas ruas pavimentadas e o seu tráfego congestionado, com os seus centros comerciais e a sua tecnologia do século XXI, a história de Carlos Hidalgo continua viva. É contada em escolas, narrada em podcasts, debatida em fóruns da internet.
Novas gerações descobrem a história e formam as suas próprias teorias, acrescentam as suas próprias interpretações e talvez essa seja a verdadeira lição do caso de Carlos Hidalgo: que algumas histórias transcendem o seu tempo e lugar específicos para se tornarem parte permanente da paisagem cultural; que o mistério, mais do que a certeza, é o que mantém vivas as narrativas humanas.
Que depois de quase dois séculos ainda nos importamos com o que aconteceu a um jovem em conflito entre o dever e o amor, entre a segurança e a paixão, entre viver a verdade ou atuar a mentira. Carlos Hidalgo desapareceu em 1840, mas a sua história, com todas as suas perguntas sem resposta, todas as suas contradições fascinantes, toda a sua ressonância humana, permanece connosco, tão viva e misteriosa hoje como foi naquela manhã de março, quando Puebla acordou para o escândalo do século e para o nascimento de uma lenda que nunca morreria. Fim. Muito obrigado por
acompanharem-nos nesta travessia por um dos mistérios mais fascinantes do México do século XIX. Se gostou desta história, não se esqueça de subscrever-se ao nosso canal, dar “like” neste vídeo e partilhá-lo com os seus amigos. E conte-nos nos comentários o que acha que realmente aconteceu a Carlos Hidalgo e Mariana Solís. Conseguiram escapar juntos?
Foram vítimas de um crime ou há uma explicação completamente diferente? Adoraríamos ler as suas teorias. Até à próxima história. E lembrem-se, a verdade é por vezes mais estranha do que a ficção. M.
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