Meu amigo, a noite no terreiro da fazenda Gado Bravo era pesada, cheia de um silêncio que o medo por anos tinha plantado. As tochas que a gente do bando acendeu faziam as sombras dançarem e a luz amarelada caía sobre a cena que a vila inteira escondida espiava. No centro de tudo estava ele, o coronel Jesuíno Bastos, ajoelhado na própria sujeira, o linho branco da roupa manchado de poeira e de pavor.

Os capangas dele, uns 20 cabras de cara fechada, estavam amontoados, amarrados e amordaçados, sem entender como o poder deles tinha virado pó em tão poucas horas. A lei do chicote tinha acabado de morrer. De pé, caminhando devagar em volta do coronel, estava o capitão Virgulino Ferreira. Ele não levantava a voz. Ele não precisava.

O olhar dele por trás dos óculos redondos era um peso que lia a alma do homem no chão. A gente do bando formava um círculo, os rifles apostos, a garantia de que a justiça daquela noite seria servida até o fim. O barão tentou falar, ofereceu tudo que tinha, o gado, o ouro, prometeu a alma, se é que tinha uma. Lampião, porém, o deixou se afogar no próprio medo por um instante.

A voz do capitão, quando finalmente saiu, foi baixa, arrastada, mas cortou o silêncio como o fio de uma peixeira. “Coronel!”, começou Lampião, dando um passo lento, as esporas tilintando. “Dizem que o Senhor é homem de muitas posses e de um passatempo diferente. Soube que o Senhor gosta de ouvir o som dos seus animais na hora da comida.”

Jesuíno Bastos, com o queixo batendo, balançou a cabeça em negação, o terror nos olhos. O capitão sorriu, um sorriso que não mostrava dente, só desprezo. “A gente não veio atrás do seu gado, barão. A gente não quer sua terra”, continuou Virgulino. “A gente veio cobrar uma dívida, uma dívida de honra”. O capitão se agachou, o rosto a um palmo do rosto do coronel.

“Sabe, coronel, no sertão tem lei. E a lei diz que o Senhor usou a alma de um velho que lhe deu a vida inteira de trabalho, de um homem que é a raiz desta terra e o fez se botar de quatro. O Senhor sentou nas costas dele, como se ele fosse um tamborete de couro.” O barão fechou os olhos, o corpo se encolhendo ao som das suas próprias maldades, sendo ditas em voz alta.

“Pois hoje”, Lampião se levantou, os olhos frios como duas pedras de gelo. “O Senhor vai conhecer a justiça do cangaço. O Senhor vai aprender que quem gosta de sentar no outro paga a conta de joelhos.” A maldade de Jesuíno Bastos não era só a da chibata que está na raiva. A dele era uma maldade fina de quem tem tédio e quer se divertir.

O coronel tinha tanto poder, tanta terra, que a vida dos trabalhadores dele, o povo da senzala, não era gente, era suas coisas, suas ferramentas. E a brincadeira preferida dele era quebrar a alma do cabra, mostrar que um homem podia virar um bicho ou menos. Todo dia depois do almoço farto na Casa Grande, o coronel se ajeitava na sua rede de varanda e gritava por seu banco.

O banco dele era gente. Era sempre um dos trabalhadores mais velhos, aqueles que o tempo já tinha curvado, como Pai Tião, um negro velho que tinha mais honra num fio de cabelo branco do que o coronel tinha na família inteira. Naquele dia, a ordem veio seca, cortando o calor da tarde. “Tião, meu banco.” O velho, com o coração na mão, teve que se aproximar.

Os capangas, com suas almas sebosas rindo, o forçaram a se ajoelhar. E então, Pai Tião teve que se botar de quatro, as mãos e os joelhos no chão quente da varanda, como um animal. O coronel Jesuíno Bastos, com todo o seu peso de homem gordo e de maldade, se ajeitou e sentou. Ele ficou ali, o desgraçado, por mais de uma hora, fumando seu charuto, dando ordem, cuspindo no chão, o pé balançando, batendo de leve na costela do velho, que tremia de dor e de vergonha.

O povo da fazenda, obrigado a ver aquilo, baixava a cabeça, mas o ódio crescia por dentro. O coronel achou que tinha dado uma lição. Achou que tinha provado que era o dono de tudo. Mal sabia ele que um causo daquele, um causo de um homem usando outro de tamborete, cria asa. E uma notícia com esse cheiro de deshonra voa rápido, voa longe e voa direto, meu amigo, direto pro ouvido de um homem que não tolera a covardia.

A cavalgada da nossa justiça já estava selando os cavalos. A humilhação do coronel Jesuíno Bastos deixou uma marca de lama e vergonha no terreiro da fazenda Gado Bravo. Mas a ferida mais profunda estava na alma de Pai Tião. O velho, que teve que se arrastar de joelhos para fora da varanda, não chorou, mas o silêncio dele era o lamento de uma vida inteira de dignidade pisoteada.

As costas, já curvadas pelo tempo e pelo trabalho, pareciam ter agora o peso do mundo e da injustiça em cima. O barão, achando que tinha dado a lição do dia, voltou para sua rede, rindo, certo de que a história morreria ali, sob o silêncio forçado de seus trabalhadores. Mas a semente de aroeira, meu amigo, quando cai em terra dura, vira tronco forte.

Pai Tião tinha um neto, um rapaz de 20 anos chamado Tonho, um cabra de fibra com o sangue fervendo e as mãos calejadas da lida. Tonho viu o avô que ele respeitava mais que a própria vida ser tratado como um cachorro, um tamborete para a soberba de um homem gordo. Ele sentiu o ódio subir pela garganta, um veneno que a cachaça não podia mais curar.

Ele sabia que não adiantava pegar o facão e ir para a Casa Grande. O barão tinha mais capanga do que ele tinha de anos de vida. O que ele precisava não era de briga de homem contra homem, mas de uma força que agisse por cima da lei dos coronéis. Naquela noite, sob a luz minguante da lua, Tonho se ajoelhou ao lado da rede do avô.

O velho Pai Tião estava de olhos abertos, sem dormir, e o rosto inchado da bota do barão. “Vô,” Tonho sussurrou, a voz rouca de raiva. “Eu vou sair, mas eu juro por essa terra que o Senhor plantou. O homem que fez isso com o Senhor vai pagar. Ele vai conhecer o que é o peso de um homem nas costas dele.” Pai Tião, com a voz fraca, apenas disse: “É a lei da semente, meu filho. O que a gente planta, a gente colhe”.

Aquelas palavras foram a bênção que o rapaz precisava. Tonho, o neto, não esperou o sol nascer. Ele não era um cangaceiro, era um trabalhador doito. Mas a coragem que ele vestia naquela noite valia mais que qualquer rifle. Ele pegou o cavalo mais magro do curral, um alazão de perna fina, mas de coração forte.

Encheu a cabaça com água, botou um pedaço de rapadura e um naco de carne seca no bornal. Olhou para a Casa Grande, um vulto branco e arrogante na escuridão, e partiu. A jornada do mensageiro da desgraça era uma loucura. Ele ia atrás de um fantasma. Lampião não tinha endereço. O capitão era o vento, a poeira, o trovão.

A casa dele era o sertão inteiro. Tonho não sabia para onde ir, mas sabia quem procurar. Ele cavalgou para o sul, onde diziam que o bando do capitão tinha sido visto pela última vez. A cada dia, o sol era um castigo, cozinhando o juízo e a pouca água da cabaça. A cada noite, o medo era um companheiro constante, o medo de ser pego pelos capangas do barão, o medo de morrer sozinho na caatinga.

Ele se guiava pelos boatos, pelos sussurros que ouvia nas poucas bodegas de beira de estrada. No quinto dia de cavalgada, quando o corpo já estava no limite, o cavalo mal se aguentava nas pernas, e a esperança era só um fiapo, ele viu: numa passagem estreita entre duas serras, escondidos numa grota que parecia ter sido cuspida pela terra, estava o acampamento.

O cheiro de fumaça de lenha e de couro denunciava. Tonho desceu do cavalo, as pernas bambas. Ele não viu o bando. Ele foi visto. De repente, como se tivessem brotado da pedra e do espinho, 10 homens o cercaram, os rifles apontados, a cara fechada, a desconfiança em cada olhar. Ele tinha chegado ao seu destino.

“Quem é você e o que quer com o capitão?” A voz de um dos cangaceiros, que depois Tonho saberia se chamar Zé Sereno, era um rosnado baixo. Tonho, com a boca seca, juntou a força que a raiva lhe deu. “Não sou inimigo e não sou espião. Vim trazer um recado que só o capitão Virgulino pode julgar. É um recado de deshonra, um homem que usou outro de tamborete para sentar.”

A palavra deshonra fez o rifle de Zé Sereno abaixar um pouco. No sertão do cangaço, certas palavras abrem mais portas do que qualquer bala. Zé Sereno, que tinha a alma desconfiada como a de um bode velho, levou Tonho ao coração do acampamento. O menino, com os pés sangrando da longa jornada, foi colocado em frente à fogueira, a luz trêmula das chamas iluminando o terror e a esperança em seus olhos.

O capitão Virgulino estava sentado numa pedra, limpando seu parabelo com um pedaço de pano, com a calma que era mais assustadora que qualquer grito de guerra. Ao redor, o bando inteiro, Corisco, Zé Baiano, Dadá, formavam um círculo, os olhos fixos no mensageiro. Aquele era o tribunal do cangaço, e a lei ali era a da honra e da palavra.

Lampião não levantou o olhar, deixou Tonho ali em pé, sentindo o peso do silêncio e dos olhares do bando. Finalmente, a voz do capitão veio, baixa e grave, mas enchendo o espaço entre as pedras. “Diga a que veio, rapaz, e reze para a sua história valer o risco que você correu.” Tonho, com a voz embargada, começou a contar.

Ele não floreou a história. Contou a seca, a miséria e a soberba do coronel Jesuíno Bastos. Contou do costume do coronel de chamar o banco depois do almoço. A voz dele tremeu quando descreveu Pai Tião, a raiz da fazenda, sendo forçado a se botar de quatro na varanda. E o coronel, com o peso de homem gordo e de maldade, sentando nas costas do velho como se fosse um tamborete de couro.

Conforme Tonho falava, o acampamento foi ficando em silêncio absoluto. Os cangaceiros, homens e mulheres acostumados com a violência, ouviram aquela história e um sentimento de nojo tomou conta de todos. Aquilo não era disputa por terra, era maldade pura feita por tédio. Quando Tonho terminou, a cabeça baixa, Lampião continuou imóvel.

Ele não gritou, não xingou, apenas terminou de limpar o rifle com a calma de um artesão. Era a fúria silenciosa de Virgulino, a raiva que se transformava em gelo e em cálculo. Ele se levantou, caminhou até a beira da fogueira e olhou para o nada, como se estivesse lendo a sentença no ar. “Esse coronel Jesuíno cometeu o crime mais sujo de todos”, disse Lampião, a voz fria e cortante.

“Ele confundiu humanidade com mobília. Ele usou a honra de um velho como tamborete para sentar. A gente não pode deixar isso passar. Se a gente deixar, amanhã ele vai fazer coisa pior.” O planejamento começou ali mesmo na terra. O capitão traçou um mapa na poeira com a ponta do punhal. Ele olhou para o Corisco.

“Corisco, você e Zé Baiano, peguem os batedores. Quero a estrada limpa. Quero saber de quantos capangas esse homem dispõe e a que horas ele volta a assentar na varanda.” Ele se virou para o bando. “A gente não vai chegar atirando e gritando. A gente vai entrar na fazenda Gado Bravo como fantasma. Eu quero o coronel vivo. A morte é um presente que ele não merece.”

“Ele vai pagar essa dívida com o próprio corpo na frente do povo que ele humilhou.” Lampião olhou para Tonho. “Você, rapaz, fez o que um homem de coragem faria. Arriscou o couro. Agora descanse. Sua parte está feita. A partir de agora, a justiça cavalga conosco.” Não existe nada no mundo mais silencioso e determinado que um bando de cangaceiro marchando para a vingança.

A gente saiu do acampamento com a primeira sombra da noite, mais de 20 homens, as selas rangendo baixo e os cascos dos cavalos abafados pela terra seca. O capitão ia na frente, a silhueta dele contra o céu noturno era a de um fantasma com chapéu de couro e a gente o seguia em fila, um corpo só movido pelo ódio justo.

A ordem era não deixar rastro e não fazer barulho, pois o coronel Jesuíno Bastos não podia saber que a sua hora estava marcada. A cavalgada era o nosso ofício. O sertão para os outros era um labirinto de espinhos e morte. Mas para nós era o nosso mapa, a nossa casa. O capitão nos guiava por veredas que só ele e os bichos conheciam, cortando a caatinga por dentro, sem tocar nas estradas onde a volante do governo fazia ronda.

A gente cavalgava de noite e no lusco-fusco e se escondia nas grotas durante o dia para poupar os animais e escapar do sol que castigava a terra. O silêncio na marcha era uma arma tão poderosa quanto o rifle, pois o coronel confiava no silêncio do povo e a gente ia provar que esse silêncio tinha asas.

No segundo dia de marcha, quando o sol estava a pino, a gente encontrou o que o capitão chamava de “a teimosia do sertão”. Estávamos atravessando uma região de serra baixa que nos daria acesso rápido às terras do coronel, mas o caminho estava cortado. Uma cabeça d’água, uma chuva forte que caiu na cabeceira, tinha transformado o riacho seco numa correnteza furiosa, cheia de pedras e lama, e a ponte de madeira que havia ali tinha sido levada.

A gente parou e a frustração subiu na garganta de alguns dos mais novos. Rodear a serra ia custar mais de um dia inteiro e o capitão tinha pressa. O barão não podia ter tempo para fugir. Lampião, porém, desceu do cavalo com a calma de sempre. Ele não xingou nem praguejou, apenas olhou para o rio barrento com um olhar que parecia calcular o risco.

“A gente não vai rodear”, disse o capitão, a voz firme. “O barão não pode ganhar tempo. A gente vai fazer o rio virar estrada. Zé Baiano, Corisco, peguem os laços. Vamos usar a força da aroeira para nos ajudar.” O que se seguiu foi um trabalho de bicho. A gente amarrou cordas de couro em troncos de aroeira que cresciam nas margens.

Com a força de 20 homens, esticamos as cordas por cima da água, fazendo uma ponte improvisada e perigosa. A travessia foi um suplício. A gente teve que guiar os cavalos, um por um, pela água barrenta e forte, escorregando nas pedras e lutando contra a correnteza. O corpo doía. O suor escorria misturado com a água suja, mas a gente se segurava, um ajudando o outro.

Cada homem que passava para a outra margem sentia a certeza da vitória crescer no peito. A gente não tinha vencido só o rio, a gente tinha vencido o obstáculo que a própria natureza tinha posto no nosso caminho. Quando o último homem e o último cavalo pisaram em terra firme, o capitão olhou para trás. O rio, que era um obstáculo, virou a prova da nossa força.

Ele se virou para o bando, o rosto sujo de terra e molhado de suor, e deu um sorriso fino. “Agora sim”, disse Lampião. “O coronel não tem mais para onde correr. A justiça não se atrasa por causa de água barrenta e ela está chegando com a pressa de quem viu um velho ter a honra roubada.” A cavalgada recomeçou ainda mais silenciosa e mais decidida.

O cheiro das terras do barão Jesuíno Bastos já estava no vento. Um cheiro de cana e de arrogância. A noite estava fechando e com ela a escuridão que era a nossa aliada e a nossa arma. O julgamento estava perto. A escuridão da noite no engenho Gado Bravo era a nossa aliada. A lua se escondeu por trás das nuvens e a fazenda do barão Jesuíno Bastos, que de dia era um reino de arrogância, virou um alvo vulnerável, mergulhado num breu que só o capitão sabia ler.

A gente deixou os cavalos num grotão fundo e nos movemos a pé, mais de 20 sombras deslizando pela terra como fumaça. O plano era o que o capitão chamava de “a dança silenciosa”. Não era para ter tiro, não era para ter grito, era para ser um pesadelo que se tornava real. O bando se dividiu, cada grupo sabendo exatamente o seu serviço. Corisco, com a fúria no olhar e a peixeira na mão, levou os homens para cercar o quartel dos capangas.

Zé Baiano, mestre em emboscada, ficou de vigia, cortando qualquer saída pela estrada. Eu fui com o grupo do capitão. A gente se moveu para a Casa Grande, o coração da cobra. O barão, em sua soberba, tinha capangas na guarda, mas eram homens acostumados a beber cachaça e a bater em velho, não a lutar com o cangaço.

A gente os apagou como se apaga uma vela. O golpe era seco e preciso, e os corpos caíam sem dar um pio, amarrados e amordaçados antes de o medo lhes assentar. Com o terreiro limpo e o quartel dos capangas cercado em silêncio, o caminho para a Casa Grande estava livre. A gente não arrombou a porta principal, que isso faz barulho de amador.

O capitão nos guiou pelos fundos, onde uma janela da cozinha, mal fechada pela preguiça de um criado, nos deu passagem. Lá dentro, o luxo da casa ofendia a gente. Móveis de madeira que valiam mais que um ano de trabalho de uma família inteira. Tapetes que escondiam a sujeira que o coronel trazia na alma.

A gente subiu a escadaria no mais absoluto silêncio, os pés calejados pisando de leve no assoalho. O ronco do coronel Jesuíno Bastos, grosso e satisfeito, nos guiava até o quarto principal. O capitão empurrou a porta devagar. O barão dormia como um anjo do inferno, esparramado na sua cama de linho. A gente se espalhou pelo quarto, os rifles apontados, a sombra de Virgulino caindo sobre o homem gordo e indefeso. O capitão não gritou.

Com a ponta fria do seu rifle, ele cutucou a testa do coronel. Jesuíno acordou num pulo, o grito entalado na garganta quando viu o capitão, os óculos redondos brilhando na penumbra. O barão viu a morte e a coragem que ele tinha para humilhar o fraco sumiu como fumaça. A gente o arrancou da cama do jeito que estava, só de camisa de dormir. Ele se debatia.

Mas a força de um homem mole, de vida mansa, não era nada contra a nossa. A mulher dele gritou, mas o capitão só fez um sinal de silêncio para ela, e a coitada desmaiou, o que foi um alívio. Arrastamos o coronel Jesuíno Bastos para fora, para o terreiro, o mesmo terreiro onde ele fazia o seu teatro de horror. Os nossos homens acenderam os archotes e a luz revelou a cena.

O todo poderoso barão foi jogado de joelhos na poeira, tremendo que nem vara verde, o corpo gordo e suado. A gente tinha fechado o círculo, a caçada tinha acabado e o capitão, de pé na frente dele, com a fúria fria no olhar, olhou para o homem no chão e voltou àquela conversa que começou toda a nossa história. “Coronel”, disse Lampião, a voz baixa, “dizem que o Senhor é homem de muitas posses e de um passatempo diferente. Soube que o Senhor gosta de ouvir o som dos seus animais na hora da comida.”

O barão Jesuíno Bastos estava de joelhos na poeira e o terreiro virou um tribunal a céu aberto. O capitão não tinha pressa. Ele mandou que a gente trouxesse o povo da senzala, os trabalhadores, as mulheres, os velhos, todos que por anos assistiram à covardia em silêncio.

A multidão formou um círculo, os rostos iluminados pelas tochas, divididos entre o pavor e uma sede de justiça que não sentiam há muito tempo. Lampião esperou que todos se juntassem e então a voz dele cortou o ar. “Povo da fazenda Gado Bravo, vocês viveram debaixo da lei deste homem. Uma lei que dizia que o suor de vocês não valia nada. Uma lei que dizia que um homem depois de velho virava tamborete para sentar. Hoje essa lei acabou.”

Ele fez um sinal para a escuridão e dois dos nossos cabras trouxeram Pai Tião. O velho caminhava devagar, amparado por um rapaz. O corpo ainda moído, mas a cabeça erguida. O barão, ao ver o velho, tentou virar o rosto, mas Corisco, postado atrás dele, agarrou seu cabelo e o obrigou a encarar sua vítima.

O capitão se aproximou do velho Tião, com um respeito que valia mais que todo o ouro do barão. “Meu velho, a sua honra é a honra do sertão, e o sertão veio hoje lavá-la. Agora olhe para esse homem e diga se ele é culpado.” Pai Tião não chorou, mas a lágrima silenciosa que escorreu por seu rosto foi a acusação mais forte que já se ouviu naquele terreiro.

O povo encorajado começou a gritar: “Culpado, assassino, paga a dívida”. A raiva represada por anos explodiu e o barão desabou em choros e súplicas. “Pelo amor de Deus, eu dou o engenho, dou a fazenda. Piedade”, ele implorava. “Piedade?”, Lampião riu, um som seco, sem alegria. “Piedade é um luxo que o Senhor nunca deu a ninguém. A sua dívida não se paga com ouro, barão. Se paga com o corpo, com a mesma moeda da humilhação e com juros.”

A tensão chegou ao auge. Todos esperavam a faca, o tiro, mas a justiça do capitão era mais fina, mais poética. Ele deu um passo à frente e a sua voz gelou o sangue de todos. “Corisco, Zé Baiano, tragam as correias de laçar boi mais grossas que acharem e tragam a sela de couro que o barão mais se orgulha de ter.”

A sela foi trazida, luxuosa, de couro trabalhado e prata. As correias eram grossas como corda de navio. O barão berrava, entendendo o que estava por vir. Lampião pegou as correias e junto com o Corisco, amarrou o barão Jesuíno de joelhos e cotovelos no chão, exatamente na posição que ele forçava Pai Tião a ficar.

Eles o amarraram à sela que foi colocada em suas costas. O coronel se debatia, chorava, mas a força dele não era nada. O capitão se ajoelhou e com um cuidado terrível ajeitou a sela nas costas do barão, apertando as correias até que o barão urrasse de dor. A sela de couro fino, símbolo de sua soberba, era agora o seu castigo.

“Barão!”, disse Lampião, a voz como um chicote. “O Senhor queria um tamborete? Aqui está. O Senhor queria que o velho se sentasse de quatro, pois essa sela vai ser o seu fardo para sempre.” Lampião se levantou e olhou para o velho Pai Tião. “Meu velho, a honra é sua. Assente-se.” O povo se agitou. Pai Tião, amparado pelo neto Tonho, caminhou até o barão.

O velho olhou para o homem gordo, chorando e berrando no chão, a sela de luxo em suas costas. O que havia nos olhos de Pai Tião não era ódio, era uma tristeza de quem vê a desgraça alheia. O velho estendeu a mão não para se sentar, mas para tocar a sela. Ele não se sentou, não precisava. A humilhação estava completa e a vingança servida. O coronel Jesuíno Bastos, o homem que usava outro como banco, tinha se tornado a sua própria mobília.

O coronel Jesuíno gemia no chão, preso à sua sela de humilhação, e o capitão Virgulino não lhe deu mais atenção. Para ele, o homem já estava morto. A sua missão agora era com o povo. Lampião subiu os degraus da varanda da Casa Grande, o mesmo lugar de onde o barão costumava dar suas ordens com o chicote. Ali ele se postou com o rifle no braço, a figura alta e magra se projetando como um novo marco na história daquelas terras.

“Povo da fazenda Gado Bravo!” A voz do capitão ecoou firme e clara, alcançando cada homem, mulher e criança no terreiro. “O que vocês viram aqui hoje não foi só a vingança de um homem, foi a queda de uma lei. A lei que dizia que o suor de vocês não valia nada. A lei que dizia que um homem, por ser pobre, vira bicho para sentar. Essa lei está morta e enterrada junto com a soberba deste barão.”

Ele fez uma pausa, olhando para a multidão, cujos olhos não mais demonstravam medo, mas uma faísca de esperança. “A partir de hoje, a lei aqui é outra. É a lei do respeito. É a lei do sertão. O barão não é mais dono desta terra. O que foi construído com o suor de vocês volta para as mãos de vocês. A cana, o gado, a casa grande, tudo será de quem trabalha. Vocês vão se organizar, escolher um líder e dividir o trabalho e o lucro com justiça. Não quero que se levante aqui um novo coronel.”

O capitão desceu os degraus e se aproximou do Pai Tião, que estava de pé com o neto Tonho o amparando. “Meu velho, a honra do Senhor está lavada. O Senhor vai ter a vida que lhe é de direito, com o respeito que lhe é de honra. Ninguém mais vai pisar no Senhor nesta terra.” Lampião se virou para o bando. A missão estava cumprida. A justiça tinha sido feita. Mas antes de partir, ele deixou o aviso final.

“A gente vai embora. Mas a lei que fica não é só a memória, é o aviso. O cangaço não tem morada, mas tem ouvido. Se um dia a notícia de que a injustiça e a covardia voltaram a reinar por aqui chegar até mim, eu volto e da próxima vez a conversa não será com sela de couro, será com chumbo.” Com a nova lei decretada, o capitão deu o sinal. O bando se moveu. Corisco e Zé Baiano recolheram as armas dos capangas do coronel, que foram desamarrados e postos para correr na escuridão. “Sumam e nunca mais voltem a pisar nesta terra.” Foi a única ordem que receberam.

O capitão Virgulino subiu em seu cavalo. O povo abriu um corredor de respeito para a gente passar. Não havia medo nos olhos deles. Havia gratidão e assombro. Lampião apenas tocou a aba do chapéu com o cano do rifle, um aceno mudo de despedida, e tocou o cavalo. A gente o seguiu sem olhar para trás. Em poucos minutos, a gente já era só uma fila de sombras desaparecendo na escuridão da caatinga. Deixamos para trás um barão quebrado e um povo que tinha acabado de nascer para a liberdade.

Meu amigo, a gente se foi na escuridão, mas a história daquela noite ficou cravada na memória da fazenda Gado Bravo, mais fundo que bala de rifle. O que aconteceu ali não foi um crime, foi um causo. E no sertão o causo voa. A notícia do barão amarrado à sua sela, humilhado na frente do povo, correu o sertão mais rápido que fogo em capim seco. Virou lenda, virou um aviso.

O coronel Jesuíno Bastos teve o castigo que o capitão queria: a morte da honra. Ele não morreu, viveu, mas a vida que ele conhecia tinha acabado. Perdeu o poder e o respeito. Os outros coronéis, quando souberam da história, viraram as costas para ele. Ele se tornou uma assombração dentro da própria casa, o fantasma de sua arrogância. O barão que fazia os outros de tamborete foi condenado a carregar o peso da sua própria vergonha.

Já a fazenda Gado Bravo, essa sim renasceu. O medo tinha ido embora. O povo, liberto da opressão, começou a se organizar. Pai Tião, o velho honrado, viveu seus últimos anos de vida em paz, com a dignidade que lhe era de direito. Ele se tornou o conselheiro do lugar, a prova viva de que a justiça, mesmo que torta, tinha voltado àquelas terras.

E o Tonho, o rapaz que cavalgou sozinho atrás do capitão, a coragem dele fez dele um homem respeitado, o guardião da memória daquela noite. Ele viu que a força de um homem não está na chibata que ele carrega, mas na determinação de não se curvar à injustiça. E a gente, o bando do capitão, a gente continuou na estrada seguindo o nosso destino, que era cobrar as dívidas de honra do sertão.

Muita gente nos chama de assassinos e bandidos, e talvez fôssemos mesmo. Mas num sertão onde a lei só servia para o rico, a gente era a única justiça que o pobre conhecia. Éramos o remédio amargo, a febre que vinha para limpar o corpo da doença da covardia. Essa é a história do barão e do seu tamborete. É a prova de que, por mais poderoso que um homem se ache, a conta da maldade sempre chega e o cobrador, meu amigo, sempre vem a cavalo.

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