O cenário era o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O ambiente, geralmente carregado de uma liturgia pesada e termos em latim, foi subitamente tomado por um tom que oscilava entre o choque institucional e o sarcasmo cortante. O Ministro Alexandre de Moraes, o homem que se tornou o para-raios das tensões políticas brasileiras, não estava ali apenas para julgar; ele estava ali para expor as vísceras de um plano que visava, literalmente, eliminá-lo da existência.

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Com a calma de quem sobreviveu a uma caçada real, Moraes desconstruiu a defesa do General Mário Fernandes, ex-assessor da Secretaria-Geral da Presidência, em um dos momentos mais memoráveis da história recente do Judiciário. A tese da defesa, que tentava classificar um plano de execução detalhado como um “mero pensamento digitalizado”, foi recebida pelo ministro com uma ironia que ecoou como uma sentença prévia: “É mais uma para os anais da literatura nacional”, zombou o magistrado.

O Arquivo “Punhal Verde Amarelo” e a Realidade Paralela

A investigação da Polícia Federal revelou que o General Mário Fernandes não apenas idealizou, mas colocou no papel — ou melhor, em bits e depois em papel timbrado do governo — o arquivo “Punhal Verde Amarelo”. O documento não era uma análise geopolítica ou um estudo de viabilidade administrativa. Era um manual de assassinato.

O réu, ao ser confrontado, afirmou que o arquivo “nada mais retrata do que um pensamento meu que foi digitalizado”. Moraes, ao ler essa declaração, não conteve o deboche institucional. Para o ministro, tratar um planejamento que envolvia lançadores de foguetes, granadas e técnicas de envenenamento como “pensamento” é uma ofensa à inteligência do povo brasileiro e à seriedade da lei.

“O pensamento digitalizado com lançador de foguetes”, repetiu Moraes, sublinhando o absurdo da frase. Ele traçou um paralelo imediato com outros réus do processo que, em depoimentos anteriores, alegavam que mandavam mensagens para si mesmos tratando-se por “Presidente” apenas para “organizar o raciocínio”. Em Brasília, a criatividade das defesas parece não ter limites quando o assunto é evitar a prisão por tentativa de golpe de Estado.

Do Palácio do Planalto ao Palácio da Alvorada: O Rastro Digital

Um dos pontos mais contundentes do voto de Moraes, que estende a narrativa para além da mera intenção, é o rastro físico e digital deixado pelos conspiradores. Não se tratava de um arquivo esquecido em um computador pessoal. No dia 9 de novembro de 2022, o plano foi impresso dentro do Palácio do Planalto.

As evidências são granulares: os registros de entrada e saída do General Mário Fernandes mostram que, logo após a impressão do documento, ele se dirigiu ao Palácio da Alvorada. Ele entrou às 17h48 e saiu às 18h56. O objetivo? Uma reunião com o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, a quem Moraes se referiu categoricamente como o “líder da organização criminosa”.

O simbolismo dessa movimentação é devastador para a narrativa da defesa. Se era apenas um “pensamento”, por que imprimi-lo na sede do governo e levá-lo para uma audiência privada com o Comandante-em-Chefe? A cronologia dos fatos, documentada pela Polícia Federal e reiterada por Moraes, aponta para uma cadeia de comando ativa, onde o plano de “neutralização” era uma pauta de trabalho.

“Neutralizar”: A Semântica do Extermínio

Durante a sessão, a Ministra Cármen Lúcia trouxe uma necessária clareza vocabular ao debate. A palavra “neutralizar”, utilizada no documento militar, foi esmiuçada. “Neutralizar significava assassinar, não é isso? Matar. Eliminar, extirpar deste mundo”, pontuou a ministra.

Moraes concordou e aprofundou: a escolha de palavras não era acidental. Assim como o termo “fake news” muitas vezes mascara a gravidade da calúnia e da desinformação, “neutralizar” servia para dar uma aura de operação técnica ao que era, em essência, um crime de homicídio triplamente qualificado contra as maiores autoridades do país.

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O plano previa a morte não apenas de Moraes, mas também do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin. No caso de Lula, os conspiradores discutiram o envenenamento ou o uso de substâncias químicas que causassem um colapso orgânico, aproveitando-se de sua condição de saúde para disfarçar o assassinato como uma fatalidade médica.

O Arsenal de Hollywood no Cerrado

O detalhamento bélico do plano “Punhal Verde Amarelo” é o que afasta definitivamente qualquer alegação de “cogitação”. Moraes descreveu o itinerário que os “Kids Pretos” (militares das Forças Especiais) planejaram. Eles conheciam a rotina de trabalho do ministro, o endereço de sua residência e, crucialmente, as especificações técnicas da blindagem dos veículos do STF.

“Havia a necessidade de fuzil 5.56, 7.62 e pistolas 9mm”, relatou Moraes. Mas o que mais chocou foi a previsão de “danos colaterais”. Os conspiradores estavam dispostos a aceitar a morte de seguranças e transeuntes para atingir o objetivo. E, caso a blindagem do carro de Moraes resistisse ao fogo dos fuzis, o plano previa o uso de um lançador de foguetes (AT-4) e lança-granadas.

“Uma operação hollywoodiana”, definiu o ministro. A frieza com que os custos bélicos e humanos foram calculados revela uma organização que não estava apenas “pensando”, mas operando na logística do terror. A “Operação Copa 2022”, como foi batizada pelos criminosos, utilizava codinomes de seleções de futebol para ocultar os passos dos executores que monitoravam Moraes em Brasília.

O Radicalismo dos “Kids Pretos” e a Queda dos Gigantes

Moraes fez questão de citar o depoimento de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, para sublinhar que o General Mário Fernandes era uma das vozes mais radicais dentro do núcleo golpista. Fernandes não era um observador passivo; ele era o motor de ignição que pressionava pela consumação do golpe e pela eliminação física dos obstáculos humanos à permanência de Bolsonaro no poder.

A revelação de que o arquivo “Fox 2017” (posteriormente renomeado para PLJ Docs) continha todos os recursos necessários — de contingente humano a armamento — sepulta a tentativa de vitimização dos militares envolvidos. A democracia brasileira, como ficou claro no voto de Moraes, não foi salva por uma súbita mudança de coração dos conspiradores, mas pela eficácia das instituições em descobrir o plano antes que o primeiro foguete fosse disparado.

Conclusão: A Justiça Não Se Deixa Intimidar

Ao encerrar seu relato, a mensagem de Alexandre de Moraes foi cristalina: a lei não se dobra a narrativas fantásticas. O “pensamento digitalizado” agora se tornou uma prova robusta de uma tentativa de golpe de Estado e de um plano de assassinato que poderia ter mergulhado o Brasil em uma guerra civil sem precedentes.

O riso irônico de Moraes durante a sessão não foi um sinal de leviandade, mas de triunfo da ordem constitucional sobre o caos planejado. Para os generais e estrategistas que acreditavam estar acima da lei, o “pensamento” agora se materializa em processos judiciais, condenações e um lugar permanente de desonra na história do Brasil. A cadeia, ao que tudo indica, será o lugar onde esses “pensamentos” poderão ser ruminados por muitos e muitos anos.