
Há pecados que a Igreja perdoa com três Ave-Marias e há pecados que mancham a terra de tal forma que nem a chuva de 1000 anos consegue limpar. O que aconteceu na fazenda Santa Eulália não foi um erro, não foi um deslize e certamente não foi amor. Foi o despertar de uma fome antiga e terrível, nascida no vazio de um coração que nunca aprendeu a bater por outra pessoa.
Esta é a história de como a brancura imaculada de uma baronesa escondeu a escuridão mais profunda que o Vale do Paraíba jamais presenciou. E tudo começou com o calor, um calor insuportável que derretia a moral e afrouxava as amarras da sanidade. Se você sente um calafrio na espinha só de imaginar os segredos que as paredes antigas destas fazendas coloniais guardam, deixe seu like agora mesmo.
De verdade, dê o polegar para cima. Isso mostra ao YouTube que não temos medo de olhar o passado no rosto, por mais doloroso e sombrio que seja. E quero saber algo de você. Que horas são na sua cidade agora? Escreva nos comentários. Quero ver quem são os corajosos que me acompanham nesta viagem ao século XIX, seja sob a luz do sol ou na escuridão da madrugada.
Agora respire fundo. Vamos entrar na fazenda Santa Eulália. Janeiro de 1850. O verão no Vale do Paraíba não era simplesmente uma estação, era um castigo divino. O ar ficava parado, pesado, saturado de umidade e do cheiro doce e enjoativo da cana-de-açúcar fermentando nos campos sob o sol implacável.
Naquela noite específica, a fazenda Santa Eulália parecia segurar a respiração. A casa grande, uma construção imponente de arquitetura colonial, erguia-se no topo da colina como um fantasma branco sob a luz da lua cheia. Suas janelas altas estavam fechadas, suas cortinas de veludo corridas, tentando em vão manter o calor asfixiante fora dos salões.
Ali dentro, no dormitório principal, a baronesa Constança de Andrade Sampaio estava acordada. Constança tinha 28 anos, mas seus olhos carregavam o cansaço de uma vida inteira. Era considerada a joia da região: pele branca como porcelana, cabelos negros que, quando soltos, cobriam suas costas como um manto noturno e uma postura tão rígida e correta que as outras senhoras da sociedade se sentiam desgrenhadas ao seu lado.
Era a esposa perfeita, a anfitriã perfeita, a católica devota que nunca faltava à missa de domingo na capela da fazenda. Mas naquela noite a máscara de perfeição estava derretendo. Seu marido, o barão Cristóvão, estava no Rio de Janeiro, na corte, bajulando ministros e fechando negócios de café. Passava mais tempo na capital do que em casa.
O casamento deles era um contrato comercial: o título dele pelo dote dela. Na cama, ele era rápido, frio e burocrático, cumprindo o dever conjugal como quem assina um despacho de alfândega. Constança remexeu-se na cama de madeira de jacarandá. O lençol de linho fino estava encharcado de suor e grudava em suas pernas.
O silêncio da casa era opressivo. Podia ouvir o tique-taque do relógio no corredor e o som do seu próprio sangue pulsando nos ouvidos. Havia um vazio dentro dela, um buraco negro no centro do peito que tentava preencher com orações, com bordados, com a gestão doméstica, mas nada funcionava.
Era uma fome, não de comida, mas de vida, de sentir algo, qualquer coisa, mesmo que fosse dor. Sentia-se como uma boneca de cera deixada ao sol, linda por fora, mas oca por dentro. Incapaz de suportar o sufoco do quarto, levantou-se. Seus pés descalços tocaram o chão de madeira fria. Usava apenas uma camisola de dormir, quase transparente devido ao suor.
Caminhou até a porta do terraço e a abriu. O ar da noite a atingiu, não fresco, mas denso, carregado com o cheiro de terra molhada e mata. A lua cheia flutuava no céu, iluminando a fazenda com uma luz prateada, quase azulada, que transformava o mundo familiar em algo estranho e onírico. Dali de cima, do terraço de pedra, tinha uma visão privilegiada do seu reino.
Os cafezais estendiam-se até onde a vista alcançava, um mar verde-escuro ondulante. E lá embaixo, a uma distância segura e higiênica, estava a senzala, os barracões dos escravos. Geralmente, àquela hora, a senzala era um lugar de silêncio exausto. Os homens e mulheres escravizados trabalhavam de sol a sol e caíam no sono como pedras.
Mas naquela noite o calor havia expulsado inclusive o sono dos mais cansados. Constança viu movimento. Pequenas sombras deslocavam-se perto das árvores que margeavam o riacho que cortava a propriedade, longe dos olhos do feitor que provavelmente dormia bêbado em sua cabana. A curiosidade picou a baronesa.
Não era a curiosidade de uma senhora preocupada com a ordem, mas algo mais primário. O que faziam? Quem eram? Sem pensar, guiada por um instinto que ela não reconhecia, Constança desceu as escadas de pedra do terraço, cruzou o jardim formal, passando pelas roseiras que sua sogra cuidava com tanto zelo, e entrou na trilha de terra batida.
O cascalho machucava seus pés descalços, mas ela não parou. Sentia o coração batendo na garganta, uma mistura de medo de ser vista e a excitação de estar fazendo algo proibido. Uma baronesa nunca caminhava sozinha à noite. Uma baronesa nunca descia ao nível dos escravos. Escondeu-se atrás de um grande jequitibá, cujas raízes grossas serviam de trincheira.
Dali tinha uma visão clara do riacho. Eram quatro homens. Tinham entrado na água para se lavar, aproveitando a única liberdade que lhes restava, o alívio da água fresca na pele castigada. Riam baixo, falavam em sussurros, jogavam água uns nos outros. Por um momento não eram peças, não eram mão de obra, eram homens.
Constança segurou a respiração. A luz da lua banhava os corpos molhados, fazendo a pele negra brilhar como ônix polido. Viu os músculos das costas se moverem enquanto um deles se agachava. Viu a água escorrer pelos peitos largos. Viu cicatrizes antigas, marcas de uma brutalidade que ela, como dona, autorizava, mas que nunca havia olhado tão de perto.
Seus olhos fixaram-se em cada um deles, catalogando-os não como seres humanos, mas como espécimes de uma vitalidade que ela invejava. Estava Damião. Ela sabia quem era, embora nunca tivesse falado com ele; era o mais alto, com ombros que pareciam suportar o peso do mundo. Tinha uma força bruta, animal, que a assustava e fascinava ao mesmo tempo.
Estava Feliciano, o mais jovem. Tinha um sorriso que brilhava na escuridão, dentes perfeitos, um corpo esguio e ágil. Parecia ter uma luz própria, uma alegria obstinada que o chicote ainda não tinha conseguido apagar. Estava Tobias, o silencioso. Estava sentado em uma rocha com a água até a cintura, olhando as estrelas.
Havia uma melancolia nele, uma profundidade que sugeria que sua mente estava longe dali, talvez na terra de onde seus pais tinham sido roubados. E estava Marcelino, o mais velho. Seus cabelos grisalhos brilhavam como prata. Seu corpo era um mapa de sobrevivência. Encurvado pelo tempo, mas resistente como madeira nobre. Constança sentiu o suor frio correr pelas costas.
Deveria ter sentido nojo. Deveria ter sentido a indignação moral de uma senhora branca vendo a nudez dos seus escravos. A igreja dizia que aquilo era pecado. A sociedade dizia que era abominação. Mas o que Constança sentiu foi um calor que subiu do seu ventre e se espalhou pelo peito, queimando suas bochechas.
Era desejo, mas não era um desejo romântico, nem sequer puramente sexual. Era um desejo de poder. Ela olhava para aqueles homens fortes, cheios de vida apesar da opressão, e sentia inveja. Ela, a baronesa, estava morta por dentro. Eles, os escravos, estavam vivos. E ela queria essa vida para si mesma. Queria consumi-la, queria tocá-la, possuí-la, quebrá-la se fosse necessário, apenas para sentir que suas mãos podiam fazer algo mais do que segurar um rosário.
Ficou ali quase uma hora, uma voyeur na escuridão alimentando-se da intimidade alheia. Viu a camaradagem entre eles, a proteção mútua, a humanidade crua que faltava nos salões de jantar do Rio de Janeiro. Quando finalmente saíram da água e começaram a se vestir para voltar à senzala, Constança recuou.
Voltou para a casa grande correndo, com a respiração ofegante, como se tivesse cometido um crime. E tinha cometido. Tinha cometido o crime de cobiçar o que não lhe pertencia: a humanidade de outro ser. Entrou no seu quarto e trancou a porta. Encostou-se na madeira fria, tremendo. Olhou-se no espelho da penteadeira.
A mulher que lhe devolvia o olhar parecia a mesma: pálida, composta, nobre. Mas os olhos… os olhos tinham mudado. Havia uma sombra neles agora, uma fome desperta. Deitou-se, mas não dormiu. As imagens dos corpos na água davam voltas em sua mente. Damião, Feliciano, Tobias, Marcelino. Os nomes bailavam em sua cabeça como uma ladainha profana.
Naquela madrugada, enquanto o sol começava a pintar o céu do Vale do Paraíba de vermelho sangue, Constança tomou uma decisão. Ela não seria mais apenas a esposa decorativa do barão. Ela não seria mais a boneca de cera. Ela tinha poder. Ela era a dona daquelas terras, daquelas árvores, daquelas águas e daquelas pessoas.
Se o barão podia usar os corpos deles para gerar lucro nos cafezais, por que ela não poderia usá-los para gerar alívio para sua solidão doentia? Sentou-se na cama e tocou o rosto. Sorriu, mas não foi um sorriso de alegria; foi o sorriso de um predador que acaba de se dar conta de que a gaiola está aberta.
No dia seguinte, chamaria Inácio, o feitor, e a verdadeira história de terror da fazenda Santa Eulália começaria não com gritos, mas com um sussurro de seda e uma ordem dada a portas fechadas. O inferno estava vazio e todos os demônios estavam ali, dentro do peito da baronesa. O amanhecer trouxe uma luz crua sobre a fazenda Santa Eulália, revelando a poeira que flutuava nos raios de sol e as moscas que zumbiam preguiçosas no calor estagnado do verão.
Para os quase 200 escravos, o nascer do sol marcava o início de outro dia de inferno no canavial e nos cafezais. Para a baronesa Constança, no entanto, era o primeiro dia de sua nova vida secreta. Constança levantou-se com uma energia nervosa que não sentia há anos. Vestiu-se com um vestido de musselina clara, prendeu o cabelo severamente num coque que esticava a pele das têmporas e desceu para o desjejum.
Comeu sozinha, como sempre, na cabeceira da mesa longa de mogno, sob o olhar pintado dos antepassados do seu marido. Mas hoje não sentia o peso esmagador dessa solidão. Sentia o formigamento elétrico da antecipação. Chamou Benedita, sua mucama pessoal. Benedita era uma jovem mulata de olhos baixos e um silêncio prudente, que sabia mais dos segredos da casa do que seu rosto inexpressivo aparentava.
“Benedita”, disse Constança com voz tranquila, cortando um pedaço de mamão com precisão cirúrgica. “Diga a Inácio que venha à biblioteca agora.” Benedita piscou surpresa, quase deixando cair a jarra de água. O feitor Inácio Mulato raramente era chamado à casa grande, e muito menos à biblioteca, o santuário privado do barão.
“O feitor, senhora?”, perguntou a jovem duvidando ter ouvido bem. “Falo em outro idioma, menina? Eu disse Inácio. Vá.” Meia hora depois, Inácio estava de pé na biblioteca. Segurava seu chapéu de palha sujo nas mãos, girando-o nervosamente, deixando cair rastros de terra vermelha no tapete persa.
Inácio era um homem temido em todo o vale, filho de uma escrava e um antigo senhor de engenho. Havia nascido nesse limbo perigoso entre dois mundos. Odiava os negros porque lhe lembravam sua origem bastarda e odiava os brancos porque sabia que nunca o aceitariam como igual à mesa. Esse ódio destilado o transformara no cão de guarda perfeito: cruel, leal apenas ao dinheiro e desprovido de qualquer rastro de consciência.
Seus olhos amarelos, felinos, percorreram a sala cheia de livros que não sabia ler até parar na baronesa. “A senhora mandou chamar.” Sua voz era áspera, como cascalho sendo arrastado. Constança estava de pé junto à janela, de costas para ele, olhando para os campos. Virou-se lentamente. Não havia medo nela; havia cálculo.
“Tenho um trabalho para você, Inácio. Um trabalho especial.” Inácio estreitou os olhos. “Se é sobre a colheita, o barão deixou instruções claras antes de ir.” “O barão não está aqui”, cortou ela, dando um passo em direção a ele. O cheiro do seu perfume de lavanda importada chocou-se violentamente com o cheiro de suor rançoso e tabaco dele. “E isto não tem nada a ver com a colheita; tem a ver com a minha segurança e com o seu bolso.”
Constança abriu uma gaveta da escrivaninha do barão e tirou uma bolsa de veludo pesado. Deixou-a cair sobre a mesa. O som metálico das moedas de ouro ao se chocarem foi o único ruído na sala. Um som que Inácio entendia melhor que qualquer idioma. Os olhos do feitor brilharam com ganância. “O que tenho que fazer?” “Conhece a casa velha, a de adobe? No fim do caminho das mangueiras, a que usavam os antigos donos antes de se construir esta mansão.”
“Sim, senhora, está em ruínas. Só serve para guardar tralhas velhas e criar aranhas.” “Quero que a limpe hoje. Quero um colchão limpo, lençóis, velas e uma jarra de água fresca. E quero que ninguém veja você fazendo isso.” Inácio assentiu lentamente, mas sua mente trabalhava rápido, tentando decifrar o enigma. Por que a baronesa quereria arrumar uma cabana em ruínas no limite da propriedade? “E esta noite”, continuou Constança, e sua voz baixou um tom, tornando-se rouca, quase irreconhecível.
“Quando a lua estiver alta e a senzala estiver fechada, quero que me traga um.” “Um?” “Um dos homens. Damião.” O silêncio esticou-se tenso e perigoso, como uma corda prestes a arrebentar. Inácio Mulato não era bobo. Havia visto as depravações de muitos senhores em sua vida, mas isto era diferente.
Olhou para a baronesa, aquela mulher de gelo e rosários, e viu o fogo doente em seus olhos. Um sorriso torto, quase imperceptível, cruzou o rosto do feitor, mostrando seus dentes manchados. Entendeu que, naquele momento, o poder havia mudado de mãos. Ela era a dona, sim, mas acabava de entregar a ele um segredo que valia mais que a vida dela.
Se o barão descobrisse, ela estava acabada. “Damião é grande”, disse Inácio testando o terreno, saboreando a nova dinâmica. “Pode ser difícil de lidar. É orgulhoso.” “Você é o feitor”, disse ela com desdém, recuperando sua postura altiva. “Não sabe manejar seu gado? Traga-o em silêncio e espere lá fora até que eu termine.”
“Se alguém souber, se uma única palavra sair da sua boca, Inácio, serei o seu túmulo.” “Senhora.” Inácio pegou a bolsa de moedas sentindo seu peso satisfatório. “Um túmulo bem pago.”
O que acabamos de presenciar é um pacto com o mal. Inácio poderia ter dito não. Poderia ter tido medo das consequências, mas a ganância foi mais forte que a moral. Quero perguntar algo muito sério. Quem você acha que é mais culpado nesta história? A baronesa, a mente mestra que usa seu poder para explorar uma vida humana? O feitor, a mão executora que facilita o crime por dinheiro e se torna cúmplice necessário?
Deixe sua opinião sincera nos comentários. Escreva “a mente” ou “a mão”. Às vezes, quem executa a ordem é tão monstro quanto quem a dá. E se você está sentindo a tensão crescente desta história, dê um like no vídeo. Vamos ver o que acontece quando cai a noite. A noite chegou como uma manta de chumbo sobre o vale.
A casa abandonada havia sido preparada. Inácio havia feito seu trabalho com eficiência brutal. Havia varrido o chão de terra, tirado as teias de aranha e colocado um colchão com lençóis que cheiravam a limpo no meio da sujeira das paredes de adobe. Havia acendido quatro velas grossas que projetavam sombras longas e dançantes nas paredes, criando uma atmosfera que oscilava entre o sagrado e o profano.
Constança já estava lá. Usava um vestido simples de linho, sem espartilho, o cabelo solto caindo sobre os ombros. Sentia o coração batendo nas costelas como um pássaro preso. Estava aterrorizada e excitada em partes iguais. Estava prestes a cruzar uma linha da qual não havia retorno. Lá fora, na senzala, o silêncio era absoluto.
Inácio entrou no barracão dos homens. O cheiro de humanidade concentrada, de suor e cansaço, era forte. Caminhou entre os corpos adormecidos, pisando com cuidado até chegar ao canto onde dormia Damião. Damião dormia profundamente, exausto após ter carregado sacas de café de 60 kg por 12 horas sob o sol. Sonhava com água, com o rio.
Inácio deu-lhe um chute seco na bota. “Levante-se, negro.” Damião acordou num salto com os instintos de sobrevivência em alerta máximo. Viu os olhos amarelos do feitor brilhando na escuridão como os de uma onça. “O que foi, senhor? Fiz algo errado?” A voz de Damião era grave, trêmula. Sua mente repassou rapidamente o dia.
Teria trabalhado devagar? Tinham-no visto no rio na noite anterior? Iam castigá-lo? “Cale a boca e caminhe. A senhora quer ver você.” “A senhora?” Damião estava confuso. Àquelas horas a baronesa deveria estar rezando ou dormindo. Ninguém era chamado à casa grande à meia-noite para nada bom. “Não faça perguntas. Caminhe.”
Inácio tirou-o da senzala sob a mira da faca, guiando-o pelos caminhos escuros, longe da casa grande, em direção aos limites da mata onde ficava a casa velha. Damião caminhava com o medo gelando-lhe o sangue. Conhecia histórias de escravos que eram levados para a mata à noite e nunca voltavam, vítimas de acidentes ou vendetas dos feitores.
Pensou em Josefa, sua mulher, que dormia no barracão das mulheres, grávida de 5 meses. Pensou em fugir. Era mais forte que Inácio. Poderia quebrar o pescoço dele com uma mão e correr para a selva. Mas sabia que, se o fizesse, caçariam Josefa, caçariam seu filho não nascido. Então baixou a cabeça, apertou os punhos e caminhou para o seu destino. Chegaram à casa de adobe.
Inácio abriu a porta rangente. “Entre.” Damião hesitou. Viu a luz das velas lá dentro, uma luz quente que não combinava com a ameaça da noite. “Entre ou corto seus tendões aqui mesmo”, sibilou Inácio ao ouvido. Damião entrou. Inácio fechou a porta por fora e ouviu-se o som pesado da tranca caindo no lugar.
Damião piscou ajustando os olhos à luz. O cômodo estava vazio de móveis, exceto pelo colchão no chão. E ali, de pé na penumbra, estava ela. A baronesa parecia um espectro, pálida, com os olhos escuros cravados nele. Damião recuou instintivamente até bater na madeira da porta, tirou o chapéu de palha e o apertou contra o peito como um escudo inútil, baixando a vista para o chão.
Sua mente não conseguia processar a imagem. “Senhora, perdi o caminho. O feitor me trouxe”, balbuciou, pensando ser uma armadilha, um teste de lealdade perverso. “Olhe para mim, Damião”, disse ela. Sua voz não era a voz autoritária e distante que usava com os criados na casa. Era uma voz estranha, suave, carregada de uma vibração febril que arrepiou os pelos da nuca de Damião.
Damião levantou a vista lentamente. Era um homem de 32 anos, um guerreiro em sua terra natal antes de ser capturado, um sobrevivente. Mas diante daquela mulher pequena e branca, naquele quarto fechado, sentia-se totalmente indefeso. “Aproxime-se.” “Não posso, senhora, não devo.” “Eu sou sua dona, Damião. Eu decido o que você deve e não deve fazer. Aproxime-se.”
Damião deu um passo arrastando os pés como se carregasse grilhões de chumbo. O instinto gritava para que corresse, para que quebrasse a porta. Mas o condicionamento de anos de escravidão, o medo incutido a sangue e fogo, mantinha-o preso à vontade dela. Constança observou-o. De perto era ainda mais imponente que no rio.
Cheirava a terra, a suor honesto e a medo. Ela estendeu uma mão trêmula e tocou o braço nu dele. A pele era quente, dura como pedra sob seus dedos frios. Damião estremeceu violentamente ante o contato, como se tivesse sido queimado com um ferro de marcar gado. “Por favor, senhora”, suplicou com lágrimas de humilhação assomando aos olhos. Ele entendeu.
Finalmente entendeu o que ela queria e esse entendimento foi pior que qualquer chicotada. Foi a confirmação de que não era dono nem sequer da própria pele. “Tenho mulher, tenho a Josefa.” “Esqueça ela”, sussurrou Constança, aproximando-se mais, invadindo seu espaço vital, consumindo o ar que ele respirava.
“Esta noite você não tem mulher, não tem nome, não tem vontade. Você é meu.” O que aconteceu naquele quarto durante a hora seguinte não foi um ato de paixão, foi um ato de pilhagem, foi a invasão de um território sagrado. Constança tomou o que queria, não com amor, mas com o desespero de um náufrago que se agarra a uma tábua no meio do oceano.
Para Damião não houve prazer, houve apenas uma dissociação profunda. Fechou os olhos e saiu dali. Sua mente voou longe, cruzou o oceano Atlântico, voltou para a África, voltou para os braços da mãe que mal recordava. Deixou seu corpo ali como uma casca vazia, para que aquela mulher doente de poder o usasse. Quando terminou, Constança afastou-se bruscamente.
Sentou-se na borda do colchão, arrumando o vestido, recuperando sua máscara de frieza quase instantaneamente. Já não o olhava. Já tinha consumido o que necessitava e agora ele voltava a ser uma coisa. “Vá”, disse ela olhando para a parede. Damião vestiu-se com mãos desajeitadas e trêmulas. Sentia-se sujo. Sentia-se oco. Abriu a porta.
Inácio estava lá sentado num tronco fumando um cigarro de palha, com aquele sorriso cúmplice e repugnante desenhado no rosto. Inácio não disse nada, apenas fez um gesto despectivo com a cabeça em direção à senzala. Damião caminhou de volta na escuridão. Suas pernas pesavam toneladas. Chegou ao barracão, deslizou para o seu colchão de palha junto de Josefa, tentando não fazer barulho.
Mas Josefa acordou. Sentiu o frio que emanava do corpo do seu marido, um frio que vinha da alma. “Damião”, sussurrou ela na escuridão. “Onde você estava? Tive medo.” Damião olhou para a escuridão do teto de palha. Sentiu as lágrimas correrem pelas têmporas em direção às orelhas. Queria gritar.
Queria lavar a pele no rio até arrancá-la, mas sabia que se falasse os matariam a todos. “O feitor mentiu”, disse Damião, e sua voz soou quebrada e irreconhecível para os seus próprios ouvidos. “Mandou-me buscar ferramentas. Durma, mulher.” Foi a primeira mentira. E foi a noite em que o gigante de ébano morreu por dentro, assassinado não por uma arma, mas pelo capricho de uma mulher que acreditava que sua alma branca justificava seus atos negros.
Na casa abandonada, Constança soprou as velas uma a uma, mergulhando o cômodo na escuridão. Sentia-se poderosa, sentia-se viva pela primeira vez em anos. E na escuridão, sorriu. Porque já estava pensando em quem seria o próximo. O que começou como uma noite de loucura transformou-se com o passar das semanas numa engrenagem de destruição.
Se a primeira visita de Damião à casa abandonada foi uma tragédia, a repetição do ato transformou a fazenda Santa Eulália num purgatório silencioso. A baronesa Constança não parou. A fome que havia despertado nela não se saciava. Ao contrário, crescia a cada encontro. Estabeleceu uma rotina macabra, um ciclo que girava com a precisão de um relógio maldito.
Cada vez que o barão viajava — e suas viagens eram cada vez mais frequentes e longas — a casa de adobe no fim da trilha iluminava-se com velas. Inácio Mulato, o feitor, transformou-se no guardião das chaves do inferno. Seus bolsos estavam cheios de ouro e sua consciência, se alguma vez teve uma, estava afogada na melhor cachaça que o dinheiro podia comprar.
Depois de Damião, veio Feliciano. Feliciano tinha 20 anos. Era conhecido na senzala pela sua voz. Enquanto cortava cana ou carregava lenha, sempre cantava. Cantava canções antigas, lamentos tristes que transformava em melodias de resistência. Diziam os velhos que Feliciano tinha um Orixá alegre na cabeça, uma luz que a escravidão não tinha conseguido apagar.
Mas numa noite de terça-feira, Inácio entrou no barracão e apontou para Feliciano. O jovem foi levado à casa abandonada. Não sabia ao que ia. Pensava com a ingenuidade da juventude que talvez a senhora quisesse que movesse algum móvel pesado. Quando entrou e viu a baronesa, quando a porta se fechou e entendeu o que se esperava dele, algo se quebrou dentro de Feliciano que nunca mais pôde ser reparado.
Não foi apenas a violência do ato; foi a destruição da sua inocência. Feliciano, que nunca tinha conhecido mulher, foi iniciado na intimidade da maneira mais sórdida possível. Como um objeto de uso, sem afeto, sem permissão, sem humanidade. Voltou à senzala tremendo com os olhos secos e vazios. Na manhã seguinte, Feliciano foi ao campo de trabalho, mas não cantou.
Os outros esperaram sua voz para marcar o ritmo do facão, mas houve apenas silêncio. O pássaro tinha parado de cantar e nunca mais voltou a fazê-lo. Transformou-se numa sombra, um autômato que trabalhava, comia e dormia, esperando que a morte o libertasse da vergonha. Depois foi a vez de Tobias. Tobias, o carpinteiro silencioso, um homem de 40 anos que encontrava sua paz na madeira.
Para ele, a baronesa não teve sequer a cortesia da sedução fingida. Foi uma transação fria. Tobias, que tinha esposa e três filhos, sentiu o peso da traição em cada fibra do seu ser. Quando regressou naquela noite, sua esposa Sabina tentou abraçá-lo. Tobias afastou-a com crueza. Sentia-se sujo.
Sentia que, se a tocasse, mancharia sua pureza com a podridão que a baronesa tinha deixado nele. Retirou-se para um canto da sua mente, construindo um muro de silêncio tão grosso que nem os choros dos seus filhos conseguiam atravessar. E, finalmente, Marcelino. O caso de Marcelino foi o que mais doeu à comunidade de escravos.
Embora ninguém soubesse a verdade completa, Marcelino tinha 53 anos. Era um ancião para os padrões da época e do trabalho forçado. Seu corpo estava curvado, suas mãos deformadas pela artrite. Que a baronesa exigisse a presença de um homem tão idoso, tão desgastado, demonstrava que seu desejo já não tinha nada a ver com luxúria física.
Era puro poder. Queria possuir a história dele, sua dignidade, sua velhice. Marcelino saiu daquela casa chorando, não por ele, mas pelo mundo. Dizia, murmurando para si mesmo, que o demônio tinha tomado forma de mulher e que o fim dos tempos estava próximo. Desde aquela noite, Marcelino começou a rezar obsessivamente pela morte, pedindo a Deus que o levasse antes que tivesse que voltar àquela casa.
Passaram-se os meses, a senzala de Santa Eulália mudou. Antes, apesar do sofrimento, havia comunidade. Havia risos partilhados ao redor da fogueira, histórias contadas pelos anciãos, consolo mútuo. Agora um manto de desconfiança e vergonha cobria tudo. Damião, Feliciano, Tobias e Marcelino formavam uma irmandade secreta de dor.
Reconheciam-se pelo olhar vazio. Sabiam, sem dizer uma palavra, quem tinha sido escolhido na noite anterior, mas nunca falavam sobre isso. O segredo era um veneno que engoliam sozinhos para proteger os outros. Em setembro nasceu o filho de Damião. Josefa deu à luz um menino forte, de pele escura e olhos grandes e curiosos. Chamaram-no Ventura.
Toda a senzala celebrou o nascimento porque uma vida nova sempre era uma vitória contra a morte. Mas quando Josefa pôs o bebê nos braços de Damião, o gigante tremeu. Olhou para aquela criatura perfeita, inocente, e depois olhou para as suas próprias mãos. As mãos que a baronesa tinha tocado, as mãos que não tinham podido defender a sua própria honra.
Damião sentiu uma náusea terrível. Como podia ser pai? Como podia ensinar a este menino a ser um homem quando ele próprio tinha sido reduzido a uma coisa? Devolveu o menino a Josefa rapidamente, quase com medo, e saiu correndo para a noite. Josefa chorou pensando que ele não queria o menino, sem saber que Damião estava chorando atrás do celeiro, mordendo o punho para não gritar sua impotência ao céu.
Entretanto, na casa grande, a vida continuava com uma hipocrisia brilhante. O barão Cristóvão regressava de vez em quando, alheio a tudo. Elogiava a gestão da sua esposa, notando que a casa estava impecável e que ela parecia mais dócil e satisfeita. Para ele, o silêncio dos escravos era sinal de disciplina, não de terror. Constança aperfeiçoou a sua vida dupla.
Pelas manhãs recebia as senhoras da sociedade para tomar chá. Falavam de modas de Paris, de religião e da carga que supunha civilizar os negros. Constança assentia, bebia seu chá em porcelana fina e sorria com a serenidade de uma santa. Ninguém suspeitava, ninguém olhava debaixo da superfície.
Benedita, a mucama, via tudo, mas seu silêncio era seu escudo. Sabia que, se falasse, terminaria no tronco ou vendida para uma mina de ouro. Assim, lavava os lençóis da casa abandonada, queimava as velas usadas e engolia a sua própria bile. Mas o destino, ou talvez a justiça divina pela qual Marcelino tanto rezava, tem formas estranhas de se mover.
Um ano depois do início desta pesadelo, o velho cura da paróquia local morreu de febres. A diocese, preocupada com as almas de uma das regiões mais ricas do império, enviou um substituto rapidamente. Era uma tarde chuvosa de novembro quando uma carruagem modesta, salpicada de lama, cruzou os portões de ferro da fazenda Santa Eulália.
Da carruagem desceu um homem jovem de apenas 27 anos. Usava uma batina preta gasta pela viagem e sapatos cheios de poeira. Tinha o cabelo castanho revolto pelo vento e olhos claros, inquisitivos, que pareciam querer ver a verdade por trás das coisas. Seu nome era Padre Justino. Vinha de Portugal trazendo consigo livros de filosofia, ideias sobre a dignidade humana e uma fé que ainda não tinha sido corrompida pelo cinismo da colônia.
O barão recebeu-o no alpendre com a cortesia falsa de quem recebe mais um empregado. Constança estava ao seu lado com as mãos cruzadas, interpretando o seu papel de devota. “Bem-vindo, padre”, disse Constança inclinando a cabeça. “Nossa capela precisa de guia. Nossas almas precisam de pastoreio.” O padre Justino olhou para ela e por uma fração de segundo Constança sentiu um calafrio.
Não foi um olhar de admiração nem de submissão. Foi um olhar de reconhecimento, como se aquele jovem sacerdote pudesse cheirar o enxofre que ela tentava ocultar com água de rosas. “As almas são a minha especialidade, baronesa”, respondeu Justino com uma voz suave mas firme. “E tenho o costume de procurar as ovelhas perdidas nos lugares mais escuros.”
Nesse momento, um trovão ecoou sobre o Vale do Paraíba. A peça que faltava no tabuleiro acabava de chegar. O homem que teria que escolher entre o conforto do silêncio e o perigo da verdade estava agora sob o teto dos pecadores. E na senzala quatro homens quebrados levantaram a vista para a chuva sem saber que a tempestade que se aproximava poderia ser a sua salvação ou a sua condenação final.
Ufa! Que densidade, não é? Estamos vendo como o mal, quando não é detido, expande-se como uma mancha de óleo. Damião, Feliciano, Tobias, Marcelino. Quatro vidas suspensas num inferno secreto. E agora chega o padre Justino, um jovem idealista entrando na boca do lobo. Quero te agradecer de coração.
Se você chegou até aqui, até o final da parte, é porque tem uma sensibilidade especial para entender a dor humana e a história oculta da nossa terra. Nem todo mundo aguenta relatos tão fortes. Obrigado pela sua empatia e pelo seu tempo. Mas te peço uma coisa, não vá embora ainda. O que vem na parte quatro é o estopim.
O padre Justino vai descobrir o segredo e a forma como o descobre vai gelando o seu sangue. O confronto é inevitável. Você acha que um simples cura poderá contra o poder de uma baronesa e de um barão? Inscreva-se, ative o sininho e prepare-se, porque a verdadeira batalha entre a luz e a escuridão começa no próximo vídeo.
O padre Justino não demorou a perceber que a fazenda Santa Eulália era um lugar onde Deus parecia estar de férias. Durante as suas primeiras semanas, o jovem sacerdote tentou estabelecer uma rotina de piedade. Celebrava missa todas as manhãs na pequena capela dourada, confessava as senhoras da região e jantava à mesa do barão escutando conversas sobre preços do café e política imperial.
Mas a sua mente e o seu coração estavam noutra parte. Estavam 300 metros colina abaixo, na senzala. Diferente dos seus antecessores, que viam os escravizados como um rebanho sem rosto, que apenas precisava ser batizado para se salvar do limbo, Justino via pessoas. E, o que é mais perigoso para a ordem estabelecida, via sofrimento injustificado.
Numa tarde de terça-feira, quebrando todas as regras não escritas da etiqueta colonial, Justino desceu à senzala sem escolta. O feitor Inácio Mulato interceptou-o na entrada com a mão no cabo da sua faca e um sorriso falso nos lábios. “Padre, este não é lugar para a sua batina.
Aqui há muita lama e doenças.” Justino olhou-o nos olhos, aqueles olhos amarelos e felinos que lhe provocavam um repulsa instintivo. “Onde há lama, Inácio, é onde mais se necessita limpar. E onde há doença é onde se necessita do médico. Deixe-me passar.” Inácio afastou-se cuspindo no chão em sinal de desprezo, mas não se atreveu a tocar num homem da igreja.
Justino entrou. O cheiro atingiu-o primeiro, uma mistura de fumaça, suor rançoso e desesperança. Caminhou entre os barracões. As mulheres pararam de moer milho para olhá-lo com desconfiança. As crianças esconderam-se atrás das saias das mães. Ninguém falava com ele. O silêncio era um muro mais alto que o da casa grande.
Foi então que conheceu tia Magdalena. Era a mulher mais velha da fazenda, uma matriarca de pele enrugada como um mapa antigo e olhos nublados por cataratas, mas que pareciam ver além do físico. Estava sentada num tronco fumando um cachimbo de barro. Justino aproximou-se e sentou-se no chão ao seu nível, sem se importar em sujar a sua batina.
“A paz esteja contigo, mãe”, disse ele. Magdalena soltou uma gargalhada seca que soou como folhas pisadas. “A paz não vive aqui, padre. A paz tem medo dos cães do barão.” Justino conversou com ela. Ao princípio, Magdalena foi evasiva, mas a sinceridade do jovem, a sua disposição para escutar sem julgar, foi abrindo fendas na sua armadura.
Ela falou-lhe da fome, dos castigos, dos filhos vendidos. Histórias terríveis, sim, mas histórias comuns na brutalidade da escravidão brasileira. No entanto, Justino notava algo mais. Uma sombra específica que escurecia os olhos de certos homens. Fixou-se em quatro figuras que pareciam afastadas do resto, como se levassem uma marca invisível na testa.
Viu Feliciano, o jovem que, segundo lhe tinham dito, tinha a voz de um anjo. Justino tentou falar com ele. “Filho, dizem que cantas para alegrar o trabalho.” Feliciano olhou-o. Seus olhos estavam vazios como poços secos. Não respondeu. Simplesmente deu a volta e afastou-se, arrastando os pés como um ancião.
Viu Tobias, o carpinteiro, um homem forte que tremia quando alguém se aproximava dele pelas costas. Viu Marcelino, o ancião, que rezava em voz baixa, repetindo obsessivamente: “Livrai-nos do mal, livrai-nos do mal.” E viu Damião, o gigante. Justino cruzou um olhar com ele e sentiu um calafrio. Damião não tinha o olhar submisso dos outros.
Tinha um olhar de vergonha profunda, uma vergonha tão corrosiva que parecia queimar-lhe a pele. “O que se passa com eles?”, perguntou Justino a tia Magdalena em voz baixa. A velha parou de fumar. Seu rosto retesou-se. Olhou em direção à colina, para a casa grande que brilhava branca sob o sol. “Há demônios, Padre, que não vêm do inferno; vêm de camas de seda.”
“O que quer dizer?” “Não pergunte, padre. O saber aqui é perigoso. O saber mata.” Mas a semente da dúvida já estava plantada. Justino voltou para a casa paroquial naquela noite com a alma perturbada. Não conseguia conciliar o sono. A imagem da baronesa Constança, tão piedosa, tão perfeita, recebendo a comunhão das suas mãos naquela mesma manhã, chocava-se violentamente com o terror que tinha visto nos olhos de Damião.
A tensão está no ar. O padre Justino já sabe que algo está errado, mas não imagina quanto. Tia Magdalena deu-lhe a pista chave: “Demônios que vêm de camas de seda”. Antes de seguir Justino na noite mais longa da sua vida, quero te perguntar: alguma vez você teve uma intuição tão forte que te impedia de dormir? Aquela sensação de que algo terrível está acontecendo perto de você.
Conte-me nos comentários se alguma vez o seu instinto te avisou de um perigo. E se você está pronto para descobrir a verdade junto ao Padre, aperte o botão de like, porque o que ele vai ver agora mudará a sua vida para sempre. A noite da descoberta foi uma dessas noites tropicais onde o ar se sente sólido. Eram 2 horas da manhã.
O calor era sufocante dentro da pequena casa paroquial. Justino, banhado em suor, desistiu de tentar dormir. Levantou-se, calçou as botas e saiu para caminhar, esperando que a brisa noturna lhe limpasse a mente. Levava o seu rosário na mão, passando as contas uma a uma, procurando consolo na repetição da oração.
Caminhou pelos jardins laterais, longe da vigilância dos cães de guarda. Tudo estava em silêncio. A lua minguante oferecia uma luz fraca, apenas suficiente para distinguir as formas das árvores. De repente, viu algo. Uma figura branca saiu pela porta traseira da casa grande. Justino deteve-se atrás de um arbusto de hibiscos.
Apertou os olhos. Era uma mulher. Pelo porte, pelo vestido claro que flutuava ao redor do seu corpo, soube instantaneamente quem era: a baronesa Constança. O que fazia a senhora da casa saindo sozinha àquelas horas? Estaria doente, sonâmbula? A curiosidade e uma premonição obscura empurraram Justino a segui-la.
Manteve a distância movendo-se com o sigilo que tinha aprendido na sua infância, caçando nos bosques de Portugal. Viu-a cruzar o jardim, passar a horta e entrar na trilha das mangueiras. Esse caminho não levava à capela nem ao rio; levava aos limites da propriedade, onde apenas havia ruínas. Justino sentiu o coração bater com força.
Algo estava terrivelmente errado. Seguiu-a até que viu uma luz tênue piscando entre a vegetação. Era a velha casa de adobe, a que diziam estar abandonada. Mas não estava. Havia luz de vela saindo pelas frestas da porta e das janelas fechadas. A baronesa chegou à porta, olhou para ambos os lados.
Justino agachou-se rapidamente atrás de um tronco e ela entrou. Justino ficou ali na escuridão, confundido. Reuniria-se ela com alguém, um amante secreto? A ideia de que a piedosa Constança tivesse uma aventura era escandalosa, mas humana. No entanto, o ambiente não parecia romântico; parecia sinistro. Minutos depois, outra figura emergiu das sombras do lado oposto, vindo da direção da senzala.
Era Inácio Mulato, o feitor, e não vinha sozinho. Trazia alguém, um homem alto, robusto, que caminhava com a cabeça baixa e os ombros caídos como se fosse para o matadouro. Justino reconheceu a silhueta: era Damião. O sacerdote levou a mão à boca para abafar uma exclamação. Inácio e a baronesa estavam castigando um escravo em segredo? Iam torturá-lo?
Viu como Inácio abria a porta da casa. A luz das velas iluminou brevemente o interior, revelando uma cama preparada. Não havia instrumentos de tortura, apenas uma cama. Inácio empurrou Damião para dentro. O homem entrou sem resistência, totalmente derrotado. O feitor fechou a porta por fora e passou a tranca.
Depois sentou-se num toco próximo, tirou tabaco e pôs-se a enrolar um cigarro com a tranquilidade de quem cumpre uma rotina aborrecida. E então, na mente de Justino, as peças do quebra-cabeça encaixaram-se com um som ensurdecedor. Não era tortura física, não era um castigo por um trabalho mal feito; era uma violação.
A santa baronesa, a mulher que rezava na primeira fila, a esposa do homem mais poderoso da região, estava usando os seus escravos como brinquedos sexuais, forçando-os com o poder absoluto que tinha sobre as suas vidas. Justino sentiu uma náusea violenta. O estômago revirou-se. Teve que se apoiar na árvore para não cair.
A imagem de Damião, esse gigante de ébano, entrando naquela casa com a cabeça baixa, partiu-lhe a alma. Não era a sua missão; era a aniquilação total da sua dignidade. O tempo parou. Justino permaneceu ali, paralisado pelo horror, incapaz de se mover, incapaz de intervir. O que podia fazer? Irromper ali? Inácio estava armado. E a baronesa, ela era a lei naquelas terras.
Passou uma hora, uma hora eterna em que Justino rezou, chorou em silêncio e perdeu a inocência que lhe restava. Finalmente, a porta abriu-se. Damião saiu. Caminhava cambaleando como um bêbado. Mas Justino sabia que não era álcool; era a dissociação do trauma. Damião passou perto de onde Justino estava escondido.
O sacerdote pôde ver o seu rosto à luz da lua. Não havia lágrimas, não havia raiva; havia apenas um vazio absoluto. Os olhos de um homem que já morreu, embora o seu corpo continue a caminhar. Inácio fez-lhe um sinal e levou-o de volta à senzala. Pouco depois saiu Constança. Arrumou o cabelo, sacudiu o vestido e começou a caminhar de regresso à casa grande.
O seu passo era leve; parecia revitalizada. Passou a 3 metros de Justino. Ele pôde ver o seu perfil. Havia um leve sorriso nos seus lábios, um sorriso de satisfação monstruosa. Justino esperou que ela desaparecesse na escuridão. Depois deixou-se cair de joelhos na terra úmida. Vomitou. Vomitou até não lhe restar nada no estômago, deitando fora toda a bile e o nojo que sentia.
Levantou-se tremendo, sujo, suado. Olhou para a casa abandonada, agora escura e silenciosa, como se nada tivesse acontecido. Mas ele sabia. Ele tinha visto. Regressou à casa paroquial como um homem perseguido por demônios. Entrou no seu quarto e trancou-se. Olhou para o crucifixo na parede. Pela primeira vez na vida sentiu que Deus não estava ali, ou, se estava, tinha tapado os olhos. Não dormiu.
Passou o resto da noite sentado na beira da sua cama olhando para as suas mãos. Essas mãos que, no dia seguinte, teriam que elevar a hóstia consagrada. Como podia celebrar missa? Como podia olhar para Constança e não lhe cuspir na cara? Como podia olhar para Damião e não lhe pedir perdão de joelhos em nome de toda a sua raça? Quando o sol saiu, trazendo um novo dia de calor ao Vale do Paraíba, o padre Justino já não era o jovem idealista que tinha chegado de Portugal.
Aquela noite tinha forjado algo novo nele, algo duro, frio e perigoso. Já não tinha dúvidas, já não tinha medo. Tinha uma missão. Sabia que estava sozinho. Sabia que o barão o destruiria se falasse. Sabia que a igreja provavelmente o silenciaria para evitar o escândalo. Mas recordou os olhos vazios de Damião.
Recordou o silêncio de Feliciano. Recordou a oração de morte de Marcelino. Lavou a cara com água fria, vestiu a sua batina preta, que agora lhe parecia uma armadura de guerra. “Mais nada de silêncio”, sussurrou ao espelho. Saiu do seu quarto, não foi à capela; foi direto para a casa grande. Ia tomar o desjejum com a besta e desta vez não abençoaria a mesa.
O padre Justino caminhou em direção à senzala com a determinação de um mártir. O sol da manhã queimava, mas ele sentia um frio glacial nas entranhas. Sabia o que tinha visto, mas necessitava escutá-lo. Necessitava que o silêncio se quebrasse. Não teve que procurar muito. Benedita, a mucama da casa grande, estava à espera dele perto do poço.
Seus olhos estavam vermelhos de chorar. Ela tinha-o visto vomitar na noite anterior no jardim. Sabia que o segredo tinha sido descoberto. “Padre”, sussurrou ela agarrando a manga da sua batina. “Se o senhor falar, matam-nos a todos.” Justino deteve-se e pôs uma mão sobre as mãos trêmulas da jovem. “O silêncio já os está matando, filha.
Apenas mais devagar. Leve-me com eles. Leve-me com Damião.” Benedita hesitou olhando para a casa do feitor. Inácio ainda dormia a bebedeira da noite anterior. Assentiu e guiou o sacerdote ao interior da senzala. O ambiente era pesado. Os escravos sentiam a eletricidade no ar. Benedita levou o padre até ao canto onde Damião estava sentado olhando para as suas mãos vazias.
Quando Damião viu o sacerdote, tentou levantar-se para fugir, para se esconder. A vergonha era um animal vivo que o comia por dentro. “Senta-te, Damião”, disse Justino, “não com autoridade, mas com uma suavidade que desarmou o gigante.” Justino ajoelhou-se no chão sujo à frente dele. “Vi-o, Damião. Ontem à noite vi o que te fizeram.” O corpo de Damião retesou-se como um arco. Esperava o julgamento.
Esperava que o cura lhe dissesse que era um pecador, que iria para o inferno pela mulher do seu senhor. Era o que a religião torcida da época ensinava. A culpa sempre caía para baixo. Mas Justino fez algo impensável. Tomou as mãos calosas de Damião entre as suas e baixou a cabeça. “Perdoa-me”, disse o sacerdote. “Perdoa-me por não ter chegado antes.
Tu não és culpado, filho. Tu és a vítima. A tua alma está limpa. É a deles que está podre.” Ao escutar essas palavras, a represa quebrou-se. Damião, o homem que carregava troncos sem gemer, soltou um soluço gutural que pareceu vir das entranhas da terra. Chorou. Chorou pela humilhação, por Josefa, pelo seu filho Ventura, a quem não se atrevia a tocar.
Um a um, os outros aproximaram-se. Feliciano, o jovem sem voz. Tobias, o carpinteiro mudo. Marcelino, o ancião que rezava pela morte. Justino escutou as suas confissões. Não eram confissões de pecados; eram crônicas de guerra. Escutou como Feliciano tinha perdido a música. Como Tobias se sentia sujo perante a sua esposa. Como Marcelino tinha perdido a fé num Deus que permitia tal monstruosidade.
O sacerdote passou 3 horas ali. Saiu da senzala com a batina suja de pó e lágrimas, mas com o espírito blindado. Já não tinha medo. Caminhou diretamente para a casa grande. Subiu as escadas de pedra. Os criados afastaram-se ao ver o seu rosto. Parecia o anjo vingador do apocalipse. Pediu para ver a baronesa.
Constança recebeu-o no salão de chá. Usava um vestido azul-celeste e um colar de pérolas. Estava bordando — a imagem perfeita da tranquilidade doméstica. “Padre Justino”, disse ela sem levantar a vista do bastidor. “A que devemos a honra tão cedo?” “Quero a verdade, Constança.” Ela parou a agulha no meio do ar, levantou a vista, o sorriso social vacilou. “Perdão?” “Sei tudo.
Vi o Damião ontem à noite. Vi a casa abandonada. Falei com eles.” A cor desapareceu do rosto da baronesa. A agulha caiu das suas mãos ao chão. Por um momento, Justino pensou que ela o negaria, que chamaria os guardas, que gritaria indignada. Mas Constança fez algo mais perturbador.
Desabou, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. “É uma doença, padre. É um demônio”, soluçou. “Não consigo parar, eu tento. Rezo, mas o vazio… o vazio é tão grande.” Justino olhou-a com uma mistura de piedade e repulsa. “Não é uma doença, senhora, é maldade. Você está devorando esses homens para alimentar a sua vaidade.
Você está destruindo famílias.” “Sinto-me sozinha!”, gritou ela com uma sinceridade histérica. “O meu marido não me olha! Ninguém me olha! Eles, eles fazem-me sentir viva!” “São pessoas, Constança. Não são láudano para os seus nervos.” Justino pôs-se de pé. “Tem de parar agora mesmo. Tem de se confessar e fazer penitência.”
Constança agarrou-o pela batina, ajoelhando-se. “Vai dizer a ele? Vai dizer ao Cristóvão?” Justino olhou-a. “O pecado é público. A reparação deve ser pública. Não posso dar-lhe a absolvição se não houver justiça.” “Ele mata-me!”, guinchou ela. “Se lhe disser, ele mata-me! Tenha piedade!” “A mesma piedade que você teve com o senhor Marcelino, com o Feliciano?”
Justino soltou-se do seu aperto e saiu do salão, deixando a baronesa chorando no chão, uma figura patética rodeada de luxo. Mas a verdadeira prova ainda estava por vir. O barão Cristóvão acabava de chegar de uma viagem à cidade vizinha. Estava no seu escritório contando dinheiro com o fumo do seu charuto enchendo a sala. Justino entrou sem bater.
“Padre”, disse o barão franzindo o cenho. “Nesta casa costuma-se bater à porta.” “Nesta casa ocorrem coisas que não deveriam ocorrer nem em Sodoma, barão.” O barão deixou o dinheiro sobre a mesa. Recostou-se na sua cadeira de couro, olhando para o jovem sacerdote com uma calma perigosa. “Do que está a falar?” Justino contou-lhe tudo. Não omitiu detalhes.
Falou da casa abandonada, de Inácio, dos quatro homens, da confissão de Constança. Falou com a paixão de quem crê que a verdade é um escudo invencível. Pensou que o barão, como homem de honra, ficaria horrorizado. Pensou que buscaria justiça. Quando terminou, houve um silêncio longo. Só se ouvia o crepitar do charuto do barão.
Cristóvão levantou-se lentamente, caminhou para a janela e olhou para fora, para as suas terras. “Terminou, padre?”, perguntou sem se virar. “Sim, senhor. É monstruoso.” “Esses homens… esses homens são meus!”, cortou o barão virando-se bruscamente. O seu rosto estava vermelho — não de vergonha pelo pecado da sua esposa, mas de fúria pela audácia do cura.
“São a minha propriedade, as minhas ferramentas. E a minha esposa… a minha esposa é o meu problema.” Justino ficou gelado. “Não lhe importa? Não lhe importa que ela tenha violado a lei de Deus e dos homens?” O barão soltou uma risa seca e amarga. “Justiça? Você é um iluso, Justino. Acha que me importa a moralidade de uns escravos? O que me importa é o escândalo.
O que me importa é que um cura estrangeiro venha à minha casa dizer-me como governar a minha fazenda.” O barão caminhou até ficar cara a cara com o sacerdote. “Tem provas? Testemunhas? Quem vai trazer? Um negro? Uma mucama? A sua palavra contra a da baronesa de Andrade Sampaio. Quem acha que acreditará em si? O bispo janta à minha mesa, Padre.
O juiz deve o seu cargo à minha influência.” Justino sentiu que o chão desaparecia sob os seus pés. Tinha subestimado o poder. Tinha acreditado que a verdade era suficiente, mas no Brasil colonial a verdade era apenas o que os poderosos diziam que era. “Eu sei a verdade”, sussurrou Justino. “E Deus também.” “Então vá contar a Deus noutra paróquia”, cuspiu o barão.
“Saia da minha casa, saia das minhas terras. Se o vir aqui depois do entardecer, solto-lhe os cães e nem a sua batina o salvará.” Justino foi expulso. Saiu do escritório atordoado, caminhou pelo corredor e viu os criados olhando para ele com pena. Sabiam o que acontecia quando alguém desafiava o barão. Saiu ao sol da tarde, olhou para a senzala; queria ir despedir-se, queria dizer a Damião e aos outros que tinha tentado, mas viu Inácio e outros dois feitores armados bloqueando o caminho.
Não podia fazer nada mais. Tinha jogado a sua carta mais alta e tinha perdido. E o pior, o mais doloroso, era a certeza de que o seu intento de justiça apenas traria mais sofrimento. Caminhou para a casa paroquial, empacotou os seus poucos pertences: uma bíblia, duas mudas de roupa, um rosário. Enquanto carregava a sua mala na velha mula que a igreja lhe tinha emprestado, olhou para trás uma última vez. A fazenda Santa Eulália brilhava sob o sol dourado da tarde, bela e podre.
Justino foi-se, mas na casa grande a tempestade apenas começava. O barão, sozinho no seu escritório, terminou a sua taça de conhaque. A fúria fria assentou no seu peito. Não lhe importava o sofrimento dos escravos, mas importava-lhe o seu honra manchada. Sua esposa tinha-o transformado num alvo de riso perante os seus próprios servos.
Dirigiu-se para o quarto de Constança, abriu a porta com um pontapé. Ela estava rezando no seu genuflexório. Ao vê-lo entrar, soube que o padre Justino tinha falado. Soube que a sua vida, tal como a conhecia, tinha terminado. “Cristóvão…”, começou ela. O barão não a golpeou. Isso teria sido demasiado passional.
Fez algo pior. “A partir de hoje”, disse ele com voz morta, “estás morta para o mundo. Ninguém te verá, ninguém te falará. Apodrecerás neste quarto até que o demônio venha buscar-te.” Fechou a porta e girou a chave por fora. Depois desceu as escadas e chamou Inácio. “Reúne esses quatro”, ordenou o barão.
“Damião, Feliciano, Tobias e o velho Marcelino.” “O que faço com eles, patrão? Ao tronco?” “Não”, disse o barão olhando para o horizonte. “O tronco cura. Quero que desapareçam. Vende-os amanhã mesmo e não os vendas juntos. Separa-os. Manda-os para os lugares mais longínquos e duros que encontrares. Minas, canaviais do norte, onde for.
Quero que sofram tanto que desejem não ter nascido.” Inácio sorriu. “Conforme as ordens, senhor.” O padre Justino, cavalgando longe pelo caminho de pó, sentiu uma dor aguda no peito. Não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas a sua alma sentia-o. Tinha acendido um pavio procurando luz e tinha provocado uma explosão. A tragédia de Santa Eulália entrava no seu ato final e não haveria misericórdia para ninguém.
É devastador. O padre Justino fez o correto, o que a sua consciência lhe ditava, e no entanto, o resultado foi catastrófico para as vítimas. O poder esmagou a justiça em questão de segundos. Isto levanta-nos um dilema moral terrível. E quero que sejas muito honesto comigo nos comentários.
Se tu fosses o padre Justino e soubesses que ao falar provocarias um castigo pior para as vítimas, terias guardado silêncio? Opção A: Falar. A verdade acima de tudo, custe o que custar. Opção B: Calar. Proteger as vítimas embora o mal continue em segredo. É uma escolha impossível, eu sei. Mas a história está cheia de escolhas impossíveis.
Escreve “falar” ou “calar” abaixo. A manhã seguinte à expulsão do padre Justino não trouxe o sol habitual ao Vale do Paraíba. O céu estava coberto de nuvens baixas e cinzentas, como se a própria natureza se vestisse de luto pelo que estava prestes a suceder no pátio da fazenda Santa Eulália. Às 5 da madrugada, Inácio Mulato cumpriu as ordens do barão com uma eficiência arrepiante.
Os quatro homens — Damião, Feliciano, Tobias e o ancião Marcelino — foram tirados da senzala. Não lhes foi permitido recolher os seus poucos pertences. Não lhes foi permitido despedir-se com dignidade. Foram acorrentados pelos tornozelos e pulsos a uma longa barra de ferro, um instrumento de transporte humano conhecido como “libambo”, utilizado para mover peças perigosas ou fugitivas.
A cena no pátio de terra batida foi o quadro mais doloroso que aquela terra tinha visto. Josefa, a mulher de Damião, correu para a fila de prisioneiros com o pequeno Ventura nos braços. Gritava o nome do seu marido, um grito agudo e desesperado que rasgava o ar úmido. Damião, o gigante que tinha suportado o peso do mundo e a humilhação da baronesa, quebrou-se ao vê-la.
Tentou avançar para ela, mas as correntes puxaram-no, fazendo-o cair de joelhos na lama. “Cuida do menino!”, rugiu Damião com lágrimas correndo pelo seu rosto marcado. “Diz-lhe quem eu fui. Diz-lhe que não fui um animal.” Inácio, montado no seu cavalo, estalou o chicote perto da cara de Josefa, obrigando-a a recuar. “Atrás, mulher, se não queres que venda o menino também!” Essa ameaça foi suficiente.
Josefa deteve-se abraçando o seu filho com força, abafando os seus soluços na manta do bebê. Viu como levavam o seu homem, arrastando-o para o caminho principal onde esperavam os compradores de escravos, mercadores de carne humana que não faziam perguntas e pagavam em dinheiro vivo. O destino dos quatro homens foi selado com a frieza de uma transação comercial.
O barão tinha sido específico: queria que sofressem. Queria apagá-los da face da terra. Feliciano, o jovem que uma vez teve a voz de um anjo, foi vendido a um senhor de engenho do Nordeste. Foi metido num navio de cabotagem, amontoado no porão como gado. A viagem durou semanas. Quando chegou aos canaviais de Pernambuco, já não era Feliciano; era apenas umas costas e uns braços.
O trabalho ali era brutal, sob um sol que não perdoava e feitores que não conheciam o descanso. Feliciano não durou um ano. A tristeza e a febre levaram-no numa tarde de domingo. Morreu em silêncio, sem cantar, esquecido numa vala comum longe das montanhas verdes que o viram nascer. Tobias, o carpinteiro, teve um destino mais obscuro — literalmente. Foi vendido para uma mina de ouro em Minas Gerais, um lugar onde os homens entravam e raramente viam a luz do dia.
As galerias subterrâneas, úmidas e perigosas, tornaram-se a sua tumba em vida. Os seus pulmões, acostumados ao cheiro da serragem e da madeira nobre, encheram-se de pó de pedra e umidade. Tobias desapareceu na escuridão da terra, esmagado por um desabamento três anos depois, sem que ninguém soubesse nunca o seu verdadeiro nome nem a sua história.
Marcelino, o ancião, teve um destino diferente, talvez o mais cruel de todos. O barão decidiu que estava demasiado velho e quebrado para ser vendido por um bom preço. Assim, manteve-o em Santa Eulália, mas sob um regime especial. Ordenou a Inácio que Marcelino fosse o exemplo. Todos os dias o ancião era obrigado a realizar trabalhos inúteis e humilhantes: carregar pedras de um lado para o outro do pátio, limpar as latrinas com as mãos, permanecer de pé sob o sol sem água.
Marcelino resistiu três meses. Não morreu de esgotamento físico, mas de vontade. Uma manhã simplesmente não se levantou. Recusou-se a abrir os olhos. Deixou-se morrer de fome e sede — um ato final de rebelião silenciosa. Quando Inácio foi dar-lhe um pontapé para que se levantasse, encontrou o corpo frio. No seu rosto, congelado no rigor mortis, havia uma expressão de paz que aterrorizou o feitor.
Marcelino tinha escapado finalmente para um lugar onde o barão não tinha poder. E Damião? Damião foi vendido para uma fazenda de café no interior de São Paulo, uma fronteira agrícola nova e selvagem. Era forte e o seu novo dono esperava tirar-lhe anos de trabalho. Mas Damião padecia de uma doença que os médicos brancos não sabiam curar.
O “banzo”, uma nostalgia mortal, uma depressão profunda que seca a alma. Damião trabalhava mecanicamente, mas o seu espírito tinha ficado em Santa Eulália, junto a Josefa e Ventura. Morreu 5 anos depois de ser separado da sua família. Contam os outros escravos que no seu leito de morte, delirando pela febre, não pedia água nem a Deus; chamava por Josefa. Estendia a mão para o ar vazio como se estivesse acariciando o rosto do seu filho.
Morreu com o nome deles nos lábios, um testamento de amor que sobreviveu à crueldade mais absoluta. Entretanto, na Casa Grande, a justiça divina operava de uma maneira lenta e retorcida. A baronesa Constança nunca mais saiu do seu quarto. O barão cumpriu a sua palavra, encerrou-a na ala oeste da mansão. As janelas foram pregadas, deixando apenas uma fresta para que entrasse um pouco de luz e ar. A comida era-lhe passada por uma abertura na porta.
Ninguém tinha permitido falar-lhe. O seu nome foi proibido na casa. Constança, a mulher que tinha buscado preencher o seu vazio devorando a vida de outros, encontrou-se agora com o vazio absoluto. Nos primeiros meses gritou, golpeava a porta, suplicava perdão, prometia ser uma esposa dócil. Depois passou à raiva, amaldiçoando Cristóvão, a igreja e os escravos que a tinham tentado.
Finalmente chegou a loucura. Sozinha na penumbra, a sua mente fragmentou-se. Começou a ter conversas com pessoas que não estavam ali. Falava com Damião, pedia-lhe que se aproximasse, ria e chorava ao mesmo tempo. Arrancou o cabelo, arranhou o rosto até sangrar. Viveu 15 anos nesse encerro, transformando-se num espectro, uma lenda de terror para os novos criados que escutavam os seus lamentos pelas noites.
Morreu sozinha no meio da sua própria sujeira, esquecida pelo mundo que tanto tinha tentado impressionar. Foi enterrada numa tumba sem nome no canto mais afastado do cemitério, como se a própria terra tivesse vergonha de abraçá-la. O barão Cristóvão sobreviveu a todos. Morreu velho, imensamente rico e respeitado pela sociedade.
O seu funeral foi um evento magnífico com bispos e políticos elogiando o seu caráter e a sua contribuição ao império. Mas morreu amargurado, sabendo que a sua linhagem estava manchada, que a sua casa era um mausoléu de ódios e que no fundo tinha perdido a batalha moral contra um simples sacerdote. E foi esse sacerdote, o padre Justino, quem carregou com o verdadeiro peso da história.
Depois de ser expulso, Justino caiu numa depressão profunda. Refugiou-se num pequeno seminário na costa, sentindo que tinha falhado. Acreditava que a sua intervenção apenas tinha acelerado a desgraça daqueles homens. Sentia-se culpado de cada chicotada, de cada separação. Deixou de rezar. Pensou em abandonar os hábitos até que 6 meses depois recebeu uma carta.
Era um papel sujo, arrugado, escrito com uma caligrafia torpe por alguém que mal sabia segurar uma pena. Não estava assinada, mas Justino soube de imediato quem a ditava: era tia Magdalena. A carta dizia: “Padre, dizem-me que está o senhor triste, dizem-me que crê que fez mal. Não o creia. O mal já estava feito.
O senhor apenas acendeu uma luz. Damião foi-se chorando, sim, mas foi-se sabendo que um homem branco o olhou nos olhos e lhe pediu perdão. Isso vale mais que o pão. Marcelino morreu, mas morreu em paz porque alguém escutou a sua dor. Não desista. O que o senhor fez importou. Pela primeira vez fomos humanos perante os olhos de alguém.
Não deixe que a nossa história morra conosco.” Justino leu a carta sob a luz de uma vela e chorou. Chorou todas as lágrimas que tinha contido e nesse choro encontrou a sua redenção. Entendeu que não podia salvar a todos, mas que tinha o dever sagrado de ser testemunha. Justino não abandonou a igreja; transformou-se. Tornou-se uma das vozes mais ferozes do movimento abolicionista nas décadas seguintes.
Utilizou o púlpito, a pena e a política para denunciar os horrores da escravidão. Contava a história de Santa Eulália em cada sermão, mudando os nomes para proteger os inocentes, mas mantendo a crueza da verdade. Fez com que a sociedade olhasse para o que preferia ignorar: a degradação moral dos senhores, a humanidade inquebrantável dos escravos.
Anos mais tarde, quando a lei Áurea foi assinada em 1888, abolindo a escravidão no Brasil, Justino era já um homem ancião. Estava na multidão que celebrava nas ruas do Rio de Janeiro, enquanto a gente gritava e chorava de alegria. Ele fechou os olhos e pensou no Vale do Paraíba. Pensou na casa abandonada.
Pensou nos olhos vazios de Damião. Pensou na voz perdida de Feliciano. “Estão livres”, sussurrou ao vento. “Onde quer que estejam agora, estão livres.” A fazenda Santa Eulália caiu em ruínas após a morte do barão. A selva reclamou a casa grande. As raízes das árvores romperam os muros de pedra e o telhado desabou sobre o salão onde Constança tomava o chá.
Hoje não resta quase nada. Apenas pedras cobertas de musgo e o silêncio da mata. A história oficial esqueceu os nomes de Damião, Feliciano, Tobias e Marcelino. Não há estátuas para eles, não há ruas com os seus nomes. Mas a sua história sobreviveu porque alguém teve a coragem de contá-la. Sobreviveu como uma brasa escondida sob a cinza, esperando o momento de voltar a arder para recordar-nos que a dignidade humana é algo que nem o chicote, nem o tempo, nem a morte podem destruir por completo.
E agora esta história é tua. Tu és a testemunha. Tu és a memória. Enquanto a recordares, eles seguem vivos. E enquanto nos indignar a sua dor, haverá esperança de que jamais permitiremos que sombras assim volvam a cobrir o nosso vale.
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